Governo lança em Brasília documento de identidade civil que substitui o RG


Camila Campanerut
Do UOL Notícias
Em Brasília 


Em cerimônia no Ministério da Justiça, o governo federal lançou nesta quinta-feira (30) o RIC (Registro de Identidade Civil) – o novo documento de identidade dos brasileiros que irá substituir o RG (Registro Geral).
Os três primeiros novos documentos foram entregues, durante a solenidade, ao presidente Lula, à primeira-dama, Marisa Letícia e o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto.
O RIC irá reunir em um só cartão os números de documentos como CPF (Cadastro de Pessoa Física), carteira de trabalho, CNH (carteira nacional de habilitação), passaporte e o título de eleitor. Ele terá ainda a impressão digital do titular, foto e assinatura e contará com um sistema de tecnologia composto por microchip e os dados serão gravados a laser no documento.
No chip do RIC também estarão armazenadas informações como sexo, nacionalidade, data de nascimento, filiação, naturalidade, assinatura, órgão emissor, local de expedição, data de expedição e data de validade do cartão, que será de 20 anos.

CONHEÇA O NOVO RG


A cerimônia conta com a presença do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Ricardo Lewandowski – cujo tribunal é parceiro do Ministério da Justiça no projeto, contribuindo com as informações presentes no cadastro eleitoral.
O Instituto Nacional de Identificação da Polícia Federal foi designado pelo Ministério da Justiça para coordenar, armazenar e controlar o cadastro único de registros para evitar a duplicidade de documentos.
O RG continua valendo até que todos os cidadãos brasileiros tenham sido recadastrados. A previsão é que a substituição seja feita ao longo de nove anos.
Na primeira etapa da implantação, dois milhões de brasileiros serão selecionados para receber o RIC. O investimento previsto para este primeiro ano é de R$90 milhões e as primeiras cidades a participarem do projeto piloto serão Brasília (DF), Hidrolândia (GO), Ilha de Itamaracá (PE), Nísia Floresta (RN), Rio de Janeiro (RJ), Rio Sono (TO) e Salvador (BA).

Morre modelo famosa por foto em campanha contra anorexia

Morre modelo famosa por foto em campanha contra anorexia


DA EFE, EM GENEBRA 

A modelo e atriz francesa Isabelle Caro, quem em 2007 posou nua para uma campanha contra a anorexia mostrando seu corpo devastado pela doença morreu em 17 de novembro, informou nesta quarta-feira (29) o site suíço 20 Minutes.
A primeira informação de sua morte foi divulgada através de uma rede social na internet por um amigo da modelo, que tinha 28 anos e provocou comoção com as fotografias feitas há três anos.
No meio da campanha, dirigida pelo fotógrafo Oliviero Toscani, conhecido por suas ideias provocadoras e pelas campanhas publicitárias da grife Benetton, Caro explicou que tinha aceitado posar para alertar as jovens sobre o perigo das dietas, dos ditados da moda e da anorexia.
Seu objetivo, segundo ela, era sensibilizar as mulheres sobre essa ameaça, que pesava sobre sua vida desde que ela tinha 13 anos e que a levou a pesar 31 quilos (tinha 1,64 m de altura).

Reuters
A modelo francesa Isabelle Caro em foto feita pelo fotógrafo Oliviero Toscani
A modelo francesa Isabelle Caro, que posou nua para Oliviero Toscani em uma campanha contra anorexia
A morte de Caro, que foi mantida em segredo pela família, não teve sua causa revelada.
Seu amigo Vincent Bigler informou ao site que a modelo havia sido hospitalizada durante duas semanas por causa de uma pneumonia, e que ultimamente mostrava um estado de extrema fraqueza. No entanto, ele disse não saber a causa de sua morte.

Viver e pensar o cotidiano


Viver e pensar o cotidiano
 
Não há restrições para se pensar sociologicamente. Todos nós, sociólogos ou não, podemos utilizar esse conhecimento para compreender as relações sociais e o mundo em que vivemos

 
Yago Euzébio Bueno de Paiva Júnior*


ILUSTRAÇÃO EDSON IKÊ
A sociologia é a ciência que estuda as consequências sociais do relacionamento dos indivíduos na sociedade. Daí ela ser uma poderosa arma para nos auxiliar na luta pelo nosso espaço num mundo social cada vez mais competitivo e desigual. Entretanto, a sociologia não conseguiu fixar-se no dia a dia das pessoas. O livro Aprendendo a Pensar com a Sociologia, dos sociólogos Zygmunt Bauman e Tim May, traça um roteiro analítico que nos permite utilizar os conhecimentos sociológicos em nosso favor.
Viver é decidir sobre as várias opções que as situações diárias nos apresentam, e a decisão implica em liberdade de escolha. Porém, essa liberdade sofre a limitação de circunstâncias sobre as quais não temos o menor controle. E os autores salientam que existe uma diferença interessante entre a habilidade de modificar uma competência e a possibilidade de alcançar as nossas metas. Essa diferença ocorre em razão de dois fatores: em determinadas situações, quando somos julgados pelas outras pessoas, nossas potencialidades ficam limitadas; e quando as condições materiais de existência condicionam nossa possibilidade de atingir as metas. "O que demonstramos aqui é o fato de que a liberdade de escolha não garante nossa liberdade de efetivamente atuar sobre estas escolhas, nem assegura a liberdade de atingir os resultados almejados. Mais que isso, demonstramos que o exercício de nossa liberdade pode ser um limite à liberdade alheia. Para sermos capazes de agir livremente, precisamos ter muito mais que livre-arbítrio" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 36).
Não podemos deixar de perceber que agimos condicionados pelas experiências que acumulamos no passado. Como nos socializamos via grupos sociais, estes também limitam o espectro de opiniões que podemos suportar. Nossas ações e percepções acerca de nós mesmos são desenhadas pelas expectativas dos grupos dos quais fazemos parte. É por isso que, coisas que nos parecem óbvias, nada mais são do que um conjunto de crenças que mudam conforme as características dos grupos aos quais nos filiamos. Ora, o que essas considerações mostram é que nosso caráter é formado por um longo processo de interação social.
INDIVÍDUO E MUNDO SOCIAL
Evidente que, nesse processo, nossas ações precisam ser avaliadas constantemente e, para tal, utilizamos a linguagem. O eu pode ser pensado em termos de conversação, na qual a consciência que formamos de nós mesmos é tributária das respostas de outrem. Ou dizendo como os autores: "Nosso caráter é, assim, construído pelo tratamento de nós como objeto de nossas próprias ações, uma vez que elas são compreendidas pelas respostas dos outros a nossa performance" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 42). Esse processo abre espaço para a socialização do indivíduo.
No caminho de formação do nosso eu vivemos espremidos na contradição entre liberdade e dependência. Falando de outro modo: é a luta interior entre o que queremos e ao que somos forçados a empreender em razão da presença dos outros. Como válvula de escape, realizamos seleções em nossos ambientes, ou seja, escolhemos grupos de referência. Esses grupos fornecem parâmetros para avaliarmos nossas ações e apresentam um quadro de padrões comportamentais aos quais aspiramos. Por exemplo, definem modelos de roupas, de linguagem, de sentimentos nas mais diversas circunstâncias. Isso nos dá sensação de segurança, pois somos confrontados cotidianamente com obstáculos que colocam em xeque nossas expectativas.
O grupo social também amplia a percepção que o indivíduo tem do mundo social. Possibilita a percepção de que a interação, o entendimento e a distância social são os fundamentos da vida. Há indivíduos que são indispensáveis à nossa existência. Abrem o caminho para que tenhamos liberdade de selecionar qual o meio de vida que melhor nos satisfaz. E quanto mais distante as pessoas estão de nós, mais estereotipada é a nossa consciência dos indivíduos que fazem parte desse processo. A elaboração da identidade que começa a sair dessa situação tem como uma de suas características a rejeição dos negativos. Formar identidades é fazer diferenciações. Essas diferenciações incluem distinção entre nós e eles.
Podemos entender que pessoas preconceituosas são aquelas que não aceitam nenhum comportamento nos outros que modifique ou coloque sob suspense, padrões estabelecidos de conduta, abrindo caminho ao exercício do poder antidemocrático que mantém os "indesejáveis" na linha. Ou, a "maioria dominante (nacional, racial, cultural, religiosa) pode aceitar a presença de uma minoria, contanto que esta última demonstre seriamente a aceitação dos valores vigentes e o desejo de viver sob suas regras" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 60).
Dessas reflexões surge uma ideia importante - a ideia de fronteira. Fronteira é fundamental para a compreensão de quem está situado fora dos pontos simbólicos de demarcação social. Desembaraçando a questão, os limites dos grupos podem ser ameaçados interna e externamente. Internamente por indivíduos dúbios, que são os desertores, os que rompem a unidade e, na linguagem comum, os vira-casacas. E, externamente, quando os valores do grupo começam a ser questionados por outros grupos, fazendo com que tenhamos que legitimar nossos valores e crenças.
Existe um fato do qual não poderemos escapar nunca: estranhos não podem ser trancafiados em celas e nem afastados de nós. Uma característica da sociedade é criar mecanismos que possibilitem que recusemos a entrada de estranhos em territórios que julgamos privados. A esse processo dá-se o nome de segregação. "O poder de recusar a entrada e, portanto, delimitar fronteiras de acordo com as características aceitáveis daqueles que ingressam é acionado para garantir relativa homogeneidade" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 69).
Um poderoso elemento segregador são as comunidades. Para que servem? Servem para construir consenso e administrar o conflito. Os laços comuns tornam-se mais fortes em pessoas isoladas, que vivem em companhia dos mesmos indivíduos e que jamais alteram seu escopo de relações. Outra característica marcante é a ideia de unidade. Os autores afirmam ainda que, na comunidade, ocorre uma diferenciação nas exigências para com seus membros.
Contudo, os homens não vivem somente em comunidades, atuam também nas organizações. Organizações são grupos de finalidade, nos quais os indivíduos são selecionados conforme as tarefas que executam. Diferentemente da família, nas organizações imperam as ações sociais racionais, cujo dado fundamental é a impessoalidade. As pessoas são transformadas em peritos. O que está por trás dos relacionamentos em uma organização é a busca constante da perfeição. Para tal, contam com uma estrutura hierarquizada. Pensem nas relações de produção que ocorrem dentro de uma empresa.
Fazendo uma comparação entre organização e comunidade, os autores chegam à seguinte conclusão: "Nem a imagem da comunidade nem o modelo da organização descrevem de modo adequado a prática da interação humana. Ambas esboçam modelos de ação artificialmente separados, polarizados, que afastam e com frequência opõem motivos e expectativas" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 90-91).
Buscamos o tempo todo justificativas para nossas ações. Geralmente explicamos os resultados de uma ação sob o prisma da inevitabilidade. Entretanto, esquecemos que os eventos não podem ser vistos como inevitáveis. São frutos de escolhas, das nossas escolhas. É chover no molhado afirmar que agimos conforme nossos propósitos. O que chamamos de conduta habitual nada mais é do que a sedimentação dos conhecimentos aprendidos com o passado. A liberdade que possuímos pode ser medida em termos do que podemos fazer e o que está fora do nosso alcance, e, quais os recursos que mobilizaremos ou não nesse empreendimento.

PODER, VALORES E LEGITIMIDADE
Derivado desse fato é necessário discorrer sobre o poder. Vale a pena citar os sociólogos: "Compreende-se melhor o poder como a busca de objetivos livremente escolhidos para os quais nossas ações são orientadas e do controle dos meios necessários para alcançar esses fins. O poder é consequentemente a capacidade de ter possibilidades". (BAUMAN; MAY, 2010, p. 102). Poder tem uma ligação estreita com valores.
Uma primeira constatação sobre os valores: nem sempre os escolhemos de uma maneira consciente. Para que eles possam dar sustentação aos indivíduos é imperioso satisfazer três condições: regramento, justificação e consentimento. O que vale dizer que os valores ajudam na produção de legitimidade, e legitimidade só se transforma em autoridade, quando os indivíduos ou organizações conseguem convencer as pessoas que suas ideias e crenças são as que devem prevalecer em detrimento de outras. Para esse trabalho de convencimento selecionam-se imagens do passado reinterpretando- as ao sabor dos mais diversos interesses. Forma-se, assim, a legitimação tradicionalista em períodos de grande instabilidade política, econômica, social e cultural; e a legitimação carismática quando se quer a transformação da ordem estabelecida. O homem é influenciado pelo pêndulo, risco e confiança. Diga-se de passagem, segundo os pensadores, esses termos estão em contínua mudança.
Outro aspecto importante abordado no livro que estamos discutindo, refere-se às motivações para a ação. Primeiro ponto: motivação é indissociável de interesse. Segundo ponto: quanto mais liberdade de escolha possuímos, mais motivados ficamos. Um problema de imediato é apontado por Bauman e May - a questão da posse. A posse, conforme os estudiosos, aumenta a autonomia, a ação e a escolha dos indivíduos. Não obstante esse fato, a posse promove nossa liberdade, restringindo a liberdade dos outros indivíduos. Posse leva à competição, e toda a competição traz latente o monopólio. Isso conduz a um tratamento diferencial entre vencedores e vencidos. "No mundo contemporâneo, a difamação das vítimas da competição é um dos meios mais poderosos de silenciar uma motivação alternativa para a conduta humana, o dever moral" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 115).
Por essa razão os autores salientam que a legitimação racional-burocrática tem como uma de suas marcas a possibilidade de realizar opções sem o "peso" dos valores morais. O homem é apenas mais uma peça de uma grande engrenagem que precisa funcionar. Contra a crescente impessoalidade da vida, a manifestação mais premente é a cultura do consumo. O mercado é despersonalizador por excelência, é o mundo das estatísticas, das multidões; e, por mais paradoxal que possa parecer, do anonimato. Todos os indivíduos têm a ambição de serem sujeitos únicos, dignos de olhares singulares. O anonimato, dessa forma, apresenta-se como um aterrorizador instrumento de silenciamento.
Como consequência, o homem vai buscar formas de combater o aniquilamento da personalização. Entretanto, essa luta não tem sido fácil. O mundo das transações monetárias invadiu um dos últimos bastiões da segurança individual, a saber, a casa - espaço outrora destinado ao exercício da diferença em relação à rua. Antes do desenvolvimento das comunicações, havia a separação entre casa e trabalho, ou falando de outro modo, o mundo do amor e o mundo das trocas. Como desenvolvimento da vida moderna, a casa se transforma na extensão do trabalho. Isso se reflete na maneira como o homem passa a pensar o seu próprio corpo, que nos dizeres de Bauman e May, transforma-se em nossa última linha de defesa. Ouçamos os teóricos; "Dado o grande volume de risco e incerteza no 'mundo lá fora', o corpo emerge como o que esperamos ser a última linha de defesa de nosso conjunto de trincheiras. Ele pode transformar-se em abrigo confiável, pois é um local que podemos controlar, permitindo-nos, assim, nos sentirmos seguros, protegidos contra aborrecimentos ou agressões" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 158).
Mesmo correndo o risco de ser cansativo, é importante escutar mais essa citação: "Esse ideal toma o corpo como um instrumento para o alcance do tipo de experiência que faz a vida agradável, divertida, excitante e, em síntese, 'boa de se viver'. A boa forma representa a capacidade do corpo de absorver o que o mundo tem a oferecer agora e o que mais poderá incluir adiante" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 163). Lembremos que o poder tem relação com a capacidade de controlar situações, desejos e sensações. Porém, o indivíduo está condicionado em suas relações com a história e a cultura na qual está inserido. Por conseguinte, externar emoções representa um ato social que varia de acordo com as linguagens em cada cultura.
A cultura refere-se à mudança das coisas que existem, asseveram os autores. E também tem relação com o sucesso individual e social, pois sucesso é a transformação do impensável em imprescindível. Nessa invenção de uma realidade que transforma a natureza, exige-se distinções. A maneira como verificamos os nossos avanços culturais se dá pela linguagem. Portanto, ter domínio sobre um código é compreender o significado dos signos. Linguagem é poder. Então, podemos afirmar que cultura nos dá poder para transformar nossas vidas e sociedades.
Num mundo onde as tecnologias criam suas demandas e onde ocorre um aumento das expertises, sabermos caminhar ante essas mudanças aceleradas nos permite compreender melhor a formação social de nosso eu, bem como a maneira como nos relacionamos e interagimos com os outros indivíduos. Como dizem os autores, o entendimento está no centro da vida social. E "[...] a sociologia ilumina os meios pelos quais conduzimos nossa vida e também questiona tal adequação com a produção de estudos e pesquisas que incitam e desafiam a imaginação" (BAUMAN; MAY, 2010, p. 266).


REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a Pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna. 3a ed., 2005.
MARTINS, Carlos Benedito. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 57a ed., 2001 (Coleção Primeiros Passos).
* Yago Euzébio Bueno de Paiva Júnior é sociólogo e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professor de Antropologia, Sociologia e Metodologia de Pesquisa do Instituto Superior de Educação (ISE) e da Faculdade de Administração e Informática (FAI) em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais

Fonte: Revista Sociologia- Editora Escala



Edição nº 32

Moradores de uma terra sem dono

Moradores de uma terra sem dono

O retrato da realidade dos moradores em situação de rua, indivíduos invisíveis aos olhos da sociedade, que perderam a cidadania e na medida em que nada têm, a principal coisa que lhes falta é dignidade
Robson Rodrigues*

Pri Vilariño

A crescente população em situação de rua no Brasil é o retrato mais cruel da miséria social que se aprofunda em diversos ramos da esfera pública. O atual estado é a consequência de uma reação em cadeia que relaciona os altos índices de desemprego, rebaixamento salarial, uso de drogas e violência. Morar na rua é o reflexo visível do agravamento social no Brasil, e a falta de políticas públicas eficientes se constitui negligência do poder público em garantir a esse cidadão condições mínimas de sobrevivência. Os mais miseráveis estão entre os que mais incomodam politicamente, estigmatizados como perigosos socialmente por serem os que não participam da geração de riquezas.
Um contingente de pessoas que pouco usufrui dos serviços básicos públicos, à mercê do Estado e indiferente à sociedade civil. Para sobreviver buscam alternativas para o banho, necessidades fisiológicas, alimentação e vestuário. Vivendo literalmente nas ruas e dormindo sobre trapos ou papelão, pessoas que constroem nas ruas suas próprias histórias, mas não como querem; não sob circunstâncias de suas próprias escolhas, e sim, sob aquelas com as quais se defrontam diretamente, legadas e transmitidas principalmente pelo passado trágico de uma vida que deixaram para trás. Apesar de serem atores da própria história, só são capazes de agir nos limites que a realidade impõe.

“E nesse aspecto veremos que a sociedade brasileira e seu ainda recente processo democrático não desenvolveram plenamente tais mecanismos. Ainda temos significativas parcelas da população alijadas da participação seja do processo político, seja da própria condição de cidadão”
Juraci de Oliveira, Sociólogo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)
Pri Vilariño

SOCIEDADE E ESTADO
O atual estado no qual se encontra a população de rua brasileira é o resultado de um conjunto de fatores que colaboram para a manutenção dessa situa ção. A ineficácia do sistema público se agrava quando não estão disponibilizados meios sociais fundamentais – programas de saú de, atendimento a usuários de drogas, abrigos, atenção à família, entre outros. O fator de primeira instância relacionado à situação dos moradores de rua é o desenvolvimento de novas técnicas de trabalho, criando uma enorme massa de desempregados na qual o sistema capitalista não consegue sustentar.
Numa sociedade capitalista que se organiza com base na compra e venda da força de trabalho, a legitimidade social e a dignidade pessoal de um indivíduo se afirmam por meio da ética do trabalho. A população de rua tem um histórico de perdas de emprego e baixa qualificação profissional, assim não se asseguram como integrantes do tecido social.
As causas relacionadas são multifatoriais e vão de questões como as mudanças nas relações de trabalho decorrentes da tecnologização dos processos produtivos, fluxos migratórios de mão de obra e a redução e desvalorização das atividades de baixa qualificação. Na avaliação do psicólogo e pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP, Dr. Walter Varanda, “os estigmas do fracasso, da impotência, da vagabundagem e da menos- valia levam ao distanciamento das estruturas sociais, e no anonimato restam as estratégias de sobrevivência possíveis na região central e áreas comerciais da cidade, que incluem, por sua vez, uma ampla rede solidária que torna a vida nas ruas uma alternativa viável, ou pelo menos mais viável que a pobreza extrema. Nesse contexto, relaxa-se a obrigatoriedade de deveres, regras de convivência e obviamente do alto custo de vida urbano, e de maneira geral, esse problema social incomoda as grandes metrópoles no mundo inteiro”.
O descaso do Estado com os desabrigados reflete inclusive nas leis que regem o País. Até 2009, a mendicância era considerada uma transgressão penal no Brasil, quando o artigo da Lei de Contravenções Penais foi revogado pela Lei nº 11.983 pelovogação pode até significar um avanço no modo como o poder público trata o caso, porém demonstra também como um Estado incapaz de garantir condições mínimas de sobrevivência, até recentemente, condenava quem mendigasse.
Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social, já existem políticas específicas voltadas para essa parcela da população. Desde 2006, o Ministério envia recursos para serviços de acolhimento de famílias em situação de risco nos municípios. O repasse do Ministério é de 1 milhão de reais para 94 municípios brasileiros que têm mais de 250 mil habitantes. Esses recursos são originários do que chamamos de “Piso de Alta Complexidade II”. Ele é destinado ao “Serviço de acolhimento institucional para adultos e famílias em situação de rua”. Esse serviço é executado nas casas de passagens e abrigos institucionais. Porém, as políticas da esfera federal divergem com as da municipal.
Nesse aspecto, a cidade de São Paulo deu provas de que ainda não trata do tema com a devida atenção. Isso pode ser demonstrado, por exemplo, com o fechamento de quatro mil vagas em albergues no centro de São Paulo, concentrando o atendimento nos bairros mais afastados. A possibilidade de não encontrar vaga em albergues para moradores de rua ou pessoas em situação de rua é cada vez maior. Sem contar, por exemplo, as rampas “contra morador de rua” nas extremidades subterrâneas da Avenida Paulista, com piso “chapiscado”, tornando-o mais áspero e incômodo para quem tentar dormir. Os viadutos da grande cidade acabam por se tornar “condomínios de luxo” dessa classe de brasileiros excluídos.
Para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho Barbosa, “um dos fatores apontados como autoritário é o fechamento dos albergues na região central da cidade e sua abertura em localidades distantes, em outras palavras, higienização. Assim, nota-se um número maior de pessoas dormindo nas ruas da região central”, alerta.
Contudo, tal ação não tem surtido o e fei to na proporção esperada, e muitos moradores de rua permanecem no centro, até porque uma de suas atividades mais característica – a de coletar papel e outros materiais para reciclagem – tem nessa região seu principal manancial.
Isso evidenciaria uma tendência a impelir os moradores de rua a saírem das zonas centrais da cidade. Na análise do sociólogo, especialista em Gestão Educacional e supervisor de programas de educação, trabalho, cultura e formação profissional, Juraci Antonio de Oliveira, a situação demonstra que a sociedade brasileira ainda não atingiu seu estágio máximo de desenvolvimento democrático. “Isso tudo nos leva ao tema da democracia (...). O que se coloca em jogo aqui são os canais, os meios de participação com que contam os diversos grupos e segmentos que compõem o tecido social. E nesse aspecto veremos que a sociedade brasileira e seu ainda recente processo democrático não desenvolveram plenamente tais mecanismos. Ainda temos significativas parcelas da população alijadas da participação seja do processo político, seja da própria condição de cidadão”, argumenta.














Além disso, o indivíduo das ruas muitas vezes é privado de seu direito de ir e vir, uma afronta à cidadania e à democracia. Para Oliveira, “é comum quando, às vésperas de importantes eventos na cidade, acontece a tentativa de afastar os moradores de rua das regiões que se constituem como os cartões postais. Isso evidencia a falta de sensibilidade dos governos municipais quanto a essa questão”, destaca o sociólogo.
Por outro lado, não se deve negar a resistência de parte de algumas dessas pessoas com relação aos albergues. Conhecidos como local de passagem, uma vez que oferecem abrigos de curta duração, os albergues têm horários definidos e regras consideradas rígidas pelos usuários, além disso, os internos precisam deixar seus objetos pessoais, submeter-se ao banho vigiado e permanecer em silêncio. Tais regras impelem conflitos entre frequentadores e agentes quanto a funcionalidade da instituição. A questão se agrava quando se observa a existência de uma regra implícita que relaciona bom comportamento a tempo de permanência.
E nesse estado de calamidade pública a responsabilidade não recai apenas sobre os ombros do Estado, a sociedade civil é responsável também pelos traumas sociais. A culpabilização do morador de rua pela situação em que se encontra não desobriga a sociedade civil de qualquer responsabilidade. Na opinião do pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP, Walter Varanda, ao adotarmos a distinção entre a sociedade civil e o poder público, para a devida responsabilização do Estado, ficamos à mercê de explicações e justificativas oficiais, que nem sempre condizem com a complexidade da questão e alimentam o estereótipo do morador de rua que se recusa a aceitar supostas ajudas para a sua reintegração social em troca da “liberdade” da vida nas ruas.
A consequência direta da usurpação da cidadania e dos direitos fundamentais está diretamente associada ao crescimento assustador da população de rua. Segundo a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua realizada pelo Governo Federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em abril de 2008, o ministério identificou 31.922 pessoas –acima de 18 anos – vivendo nessa condição. A pesquisa envolveu 71 municípios, sendo 23 capitais e 48 cidades com mais de 300 mil habitantes.
Na análise do ex-morador de rua e coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Anderson Lopes Miranda, o número atual é muito maior. “O Brasil tem 5.565 municípios, se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fizesse um censo que estamos cobrando, o número estaria em torno de um milhão de pessoas vivendo nas ruas”, calcula.
Para se ter uma ideia, só na cidade de São Paulo, nas últimas duas décadas, o número saltou de três para mais de 13 mil pessoas vivendo nas ruas. Para o pesquisador Walter Varanda, “o crescimento da população de rua seria ainda maior, não fosse o alto índice de mortalidade decorrente das condições de insalubridade a que estão sujeitos”, acrescenta.
Fora de São Paulo é mais difícil mensurar o número e a situação dos moradores de rua. E a própria sociedade tenta esconder essa realidade assustadoramente cruel. Segundo Anderson Lopes Miranda, “as cidades omitem sua população de rua porque não querem reconhecer que falta muito a se fazer por essas pessoas”. Miranda, que morou por 15 anos nas ruas, relata que nas capitais o indivíduo até consegue tirar documentos e utilizar alguns serviços básicos; já fora dos grandes centros a situação é inversa. “Por meio da ‘higienização’ a guarda das prefeituras retira todos os pertences do indivíduo, inclusive documentos e bens pessoais”, conta.
Para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho Barbosa, “não existe por parte do governo municipal uma política clara em relação à população de rua, que seja intersecretarial, mas sim, ações pontuais. As entidades conveniadas reclamam também dos valores repassados para manutenção dos equipamentos destinados a essa população”. Ou seja, políticas paliativas que não resolvem o problema, dessa forma, o sistema público não enxerga as sutis diferenças entre viver na rua, estar na rua e ficar na rua, detalhes fundamentais na hora do desenvolvimento estratégico.
Assim, esse é um problema tanto da sociedade quanto do Estado e revela uma impotência em lidar com a situação de forma civilizada. De acordo com o pesquisador Walter Varanda, essa destituição total dos direitos do outro mostra desvios de caráter incompatíveis com a vida em sociedade. “O morador de rua torna-se, nesses casos, depositário de estigmas e negatividades, atuando como elemento expiatório de desequilíbrios sociais decorrentes do individualismo vigente na sociedade moderna. A simples aceitação das diferenças sociais nessa ordem de grandeza desumaniza a ponto de se confundir a pessoa com a situação em que ela se encontra, alimentando o estigma a ela imposto, negando sua história de vida e impedindo a identificação de suas qualificações e potencialidades como se elas não existissem e não fosse possível um novo projeto de vida”, afirma o pesquisador.
“O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais”
Milton Santos (1926 - 2001), Geógrafo



Pri Vilariño
CIDADANIA CORROMPIDA
O conceito de cidadania na sociedade a qual vivemos está fortemente relacionado à noção de democracia e direitos que permitem ao indivíduo participar de escolhas que afetam suas vidas. O pensador Norberto Bobbio concebia um regime democrático como um método de governo, um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, no qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados.
Contudo, como garantir direitos básicos a esse segmento de excluídos, sendo que quase a metade dessa população não possui qualquer documento pessoal como carteira de identidade ou título de eleitor – símbolos de cidadania – o que as exclui da vida civil, deixando de ter direitos e de serem reconhecidos como cidadãos? Indivíduos que pouco participam de processos fundamentais da vida política do cidadão, como votar. É nesse quesito que a atual democracia peca ao não cumprir suas promessas de igualdade, de ampla participação e garantia de direitos.
Mesmo despojados do preceito básico da democracia, tais indivíduos se constituem como cidadãos. Segundo o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “os direitos humanos foram uma conquista ao longo da história da civilização e que ainda hoje, em pleno século 21, é um campo que se encontra longe do consenso. O mesmo ocorre com status de cidadão. Poderíamos dizer que no limite, moradores de rua e tantos outros excluídos, são cidadãos, porém não são tratados como tal, não exercem seus direitos e deveres dentro dos padrões minimamente aceitáveis”, argumenta.
Já para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho, “essas pessoas não são vistas como sujeitos de direito e que de alguma forma, em algum momento de suas vidas ou tiveram seus direitos negados ou alijados, mas, como vítimas de sua incapacidade ou de seu pecado e por lhes destinarmos um olhar de caridade, piedade, misturado com desprezo, não há um reconhecimento de sua humanidade”.
O geógrafo e professor Milton Santos acrescenta: “O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva e as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna”.
Mesmo sendo cidadãos por natureza, eles têm suas prerrogativas sucumbidas pelo Estado, que se diz pluralista e representativo, mas que não garante meios de sobrevivência a todos os cidadãos. De tal modo que não são apenas moradores sem casa, são também cidadãos sem direitos. Disso nasce a crítica na qual o filosofo Jean-Jacques Rousseau admitia que essa representatividade não traduz a vontade de um cidadão para o outro. Rousseau acreditava que a vontade só será geral se tiver a participação de todos os cidadãos de um Estado. Para ele, a soberania só existe se for geral. “(...) É a [vontade] de todo um povo ou de uma parte dele. No primeiro caso, esta vontade declarada é um ato de soberania e faz lei, no segundo, é simplesmente uma vontade particular, um ato de magistratura ou, quanto muito, um decreto”.
Mesmo em que no atual contexto de um país com mais de 190 milhões de pessoas a representatividade seja necessária, no caso dos moradores de rua o Estado não se aproxima de modo eficiente dessa categoria. Portanto, mesmo que os princípios democráticos indiquem igualdade entre os diferentes estratos sociais, o morador em situação de rua em nada é igual com relação ao restante da população. São iguais apenas entre si devido à própria condição, uma massa de desabrigados que estão em seu estado máximo de carência, o que reforça a perda da própria identidade e a situação de total exclusão social.
Essa opressão se materializa na violência e na intolerância praticada por vários agentes da sociedade contra os moradores de rua em geral. Os níveis de agressão e impunidade crescem a cada dia em todos os sentidos. O número de vítimas ao longo de 10 anos foi proporcionalmente maior. Os fatos recentes comprovam, e o mais marcante de todos foi o massacre ocorrido em 2004, no qual 15 moradores de rua foram atacados por um grupo, enquanto dormiam, na região central da cidade de São Paulo. Das 15 pessoas que dormiam, sete morreram, até hoje apenas um dos apontados como culpados pelos assassinatos foi preso.
“Os estigmas do fracasso, da impotência, da vagabundagem e da menos-valia levam ao distanciamento das estruturas sociais, e no anonimato restam as estratégias de sobrevivência possíveis (...) que incluem,
por sua vez, uma ampla rede solidária que torna a vida nas ruas uma alternativa viável,
ou pelo menos mais viável que a pobreza extrema”
Pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP
Pri Vilariño
O EFEITO DAS GRANDES CIDADES
A população de rua faz parte do cenário das grandes cidades do mundo. Trata-se de um segmento social que, sem trabalho e sem casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia.
Para o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “esse talvez seja um fenômeno comum aos grandes centros urbanos, onde convivemos com múltiplas realidades. De tanto convivermos com a diversidade e a adversidade, já não percebemos as nuances da cidade”.
Desse modo, esses indivíduos se tornam seres invisíveis aos olhos da sociedade, saturados pela miséria das ruas, pela negação dos direitos básicos e essenciais e vítimas dos próprios estigmas e adversidades. O sociólogo alemão Georg Simmel (1858 – 1918) destacava essa relação entre o indivíduo e a metrópole, da influência da grande cidade moderna na personalidade e na vida mental dos seus habitantes. Uma individualidade urbana caracterizada pela reserva, desconfiança, apatia e falta de solidariedade.
O que Simmel falava se torna evidente nas cidades do Brasil. A exposição dos habitantes urbanos a diversos contrastes e estímulos sucessivos da deplorável situação a qual se encontram os moradores de rua é tão grande a ponto de se chegar ao esgotamento da sensibilização, gerando cada vez mais discriminação e apatia. Essa indiferença com relação ao morador de rua – causada pela mendicância – provoca o que Simmel chamou de “caráter blasé”, ou seja, essas experiências vividas cotidianamente causam indiferença de grande parte dos indivíduos. Se não fosse assim, segundo o sociólogo alemão, os habitantes dos grandes centros entrariam num estado mental de excitação tal que levaria a neurose, dada à diversidade, velocidade e intensidade dos estímulos aos quais estão expostos.
“Assim como uma vida imoderada de prazeres torna-se blasé, porque excita por muito tempo os nervos nas suas reações mais fortes, até que eles acabam por já não ter nenhuma reação, assim também as impressões inofensivas, pela rapidez e pela incompatibilidade da sua mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem para cá e para lá de modo tão brutal, que eles entregam a sua última reserva de forças e, permanecendo no mesmo meio, já não têm tempo para acumular uma nova (...). A incapacidade, assim originada, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é justamente aquele caráter blasé”, afirmou Georg Simmel.
O indivíduo da grande cidade como São Paulo, rodeado por milhares de modificações individuais, cria um órgão protetor. A presença da população de rua na modernidade está tão incorporada à paisagem que já se tornou banal. Paradoxalmente, só são notados pela grande maioria da população quando não estão presentes. A intensificação de ver constantemente pessoas no estado máximo de carência e desamparo não gera mais compaixão; ao contrário, brota uma mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores, e a contemporaneidade não é apenas um cenário onde esse grupo reside, é, antes de mais nada, um pré-requisito para que ele exista.
Por outro lado, podemos evocar também o dramaturgo alemão Bertolt Brecht que propunha o exercício do distanciamento como forma de estranhamento da realidade para podermos exercer melhor nossa crítica. Dessa forma, podemos perceber as iniquidades do cotidiano, das quais não nos damos conta, pois estamos imersos nessa realidade e dela fazemos parte. Brecht dizia que aquele que não estranha mais a violência, que sequer a percebe, é porque também já se tornou violento.



Quem são os moradores de rua?
De acordo com o Censo de São Paulo de 2010 realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe), coordenado pela economista e professora da FEA – USP (Universidade de São Paulo), Silvia Maria Schor, quase 80% das pessoas que vivem nas ruas são homens em idade média de 40 anos. Os dados revelam a dificuldade de reintegração ao mercado de trabalho. Isso expõe o quanto a desqualificação profissional limita a inserção no mercado de trabalho. O pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP, Dr. Walter Varanda vai além. “A população de rua é constituída na sua maior parte por adultos em idade produtiva, como mostram os censos realizados, sua situação é praticamente a mesma ao longo das últimas décadas apesar de serem sujeitos de direitos, e existem sérios equívocos em tratá-la como caso de polícia”, salientou o pesquisador.
O perfil dessas pessoas mostra que, apesar de mais de 90% saberem ler e escrever, a maioria não chegou a completar o ensino fundamental. Para o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “o fato da maioria dessas pessoas terem certo grau de escolaridade indica que tinham um nível de participação na vida social”. Porém, na atual situação a qual estão, encontram-se à margem da Desenvolvisociedade e desprovidas de atuarem como devidos cidadãos que são. Os dados também revelam que na sua grande maioria são “não brancos”, incluindo-se os negros, pardos, amarelos e indígenas. Observe no gráfico os números sobre a distribuição dos moradores de rua por cor e sexo, segundo os dados da pesquisa.
O uso de drogas também é uma constante. A maioria dos moradores de rua bebe e usa drogas. Entre os 18 e 30 anos, a proporção atinge 80%. A droga mais consumida é o crack. De acordo com o pesquisador Walter Varanda, o uso de álcool e drogas está relacionado ao autocontrole, autonomia e estados alterados de consciência em decorrência do uso. “Aos rituais de uso estão associados à sociabilidade, às relações de parceria, proteção e segurança. A vida nas ruas é recheada de códigos, de “jeitos” que tornam o crack para uns e a bebida para a maioria uma opção interessante, sem falar da disseminação da maconha, que permeia o uso das outras drogas. Isto quer dizer que o uso abusivo, na situação de rua, é mais intenso que em outras situações em que o sujeito convivesse com algum controle social. Quando os ganhos com o uso da substância são maiores que os ganhos em situações nas quais haja controle, por exemplo, no ambiente de trabalho ou familiar, o sujeito vai procurá-la na rua”, expõe o pesquisador.
Também a alta taxa de usuários se deve à intervenção neuroquímica da substância que alivia, conforta, estimula, anestesia, diminui a autocensura, relaxa o autojulgamento e permite certa maleabilidade da autoimagem, principalmente aquela que o sujeito não gosta. “Além disso, a embriaguez viabiliza processos nostálgicos através de mergulhos em dinâmicas emocionais regredidas, permitindo a reedição de padrões comportamentais aprendidos e valorizados em outros momentos da vida”, lembrou VarandOutro fator que pode ajudar a entender esse fenômeno é a questão do histórico da população de rua da cidade, já que mais da metade dos moradores foi internada em alguma instituição, predominando casas de detenção, clínicas de recuperação de álcool e drogas e Febem. Entre os jovens, 70% já passaram por alguma instituição.

Entre o espaço público e o privado
Excluídos da sociedade, os moradores de rua ressignificam o único espaço que lhes foi permitido ocupar, o espaço público, transformando-o em seu “lugar”, um espaço privado. Espalhados pelos ambientes coletivos da cidade, fazendo comida no asfalto, arrumando suas camas, limpando as calçadas como se estivessem dentro de uma casa: assim vivem os moradores de rua. Ao andar pelas ruas de São Paulo vemos essas pessoas dormindo nas calçadas, passando por situações constrangedoras, pedindo esmolas para sobreviver. Essa é a realidade das pessoas que fazem da rua sua casa e nelas constroem sua intimidade. Assim, a ideia de individualização que está nas casas, na separação das coisas por cômodos e quarto que servem para proteger a intimidade do indivíduo ganha outro sentido. O viver nas ruas, um lugar aparentemente inabitável, tem sua própria lógica de funcionamento que vai além das possibilidades.
A relação que o homem estabelece com o espaço que ocupa é uma das mais importantes para sua sobrevivência. As mudanças de comportamento social foram sempre precedidas de mudanças físicas de local. Por mais que a rua não seja um local para viver, já que se trata de um ambiente público, de passagem e não de permanência, ela acaba sendo senão única, a mais viável opção. Alguns pensadores já apontam que a habitação é um ponto base e adquire uma importância para harmonizar a vida. O pensador Norberto Elias aponta que “o quarto de dormir tornou-se uma das áreas mais privadas e íntimas da vida humana. Suas paredes visíveis e invisíveis vedam os aspectos mais ‘privados’, ‘íntimos’, irrepreensivelmente ‘animais’ da nossa existência à vista de outras pessoas”.
O modo como essas pessoas constituem o único espaço que lhes foi permitido aponta que conseguiram transformar em “seu lugar”, que aproximaram cada um à sua maneira dois mundos aos quais estamos inseridos: o público e o privado.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 4ª edição. São Paulo: Nobel, 1998.
VIEIRA, M. A C. et cols., População de rua. Quem é, como vive, como é vista. São Paulo: HUCITEC, 1992.
* Robson Rodrigues é jornalista

Fonte: Revista Sociologia   
Edição nº 32

Uma contribuição da Psicanálise para o voluntariado


                Uma contribuição da Psicanálise para o voluntariado

















              


Quais fatores motivam as pessoas a se voluntariar, quais os riscos em questão, e mais: o que pode sustentar esse tipo de trabalho, garantindo um intercâmbio construtivo para todos e a longevidade da ação?

por Rachele Ferrari







Por qual recompensa?
Jean Rhodes, psicóloga americana, pesquisadora de Programas de Mentoring nos EUA, coordenou uma investigação relatada em seu livro Stand by me: the risks and rewards of mentoring today's youth (2002, p. 57), na qual foi verificado que metade de todas as relações com mentores voluntários se dissolve dentro de poucos meses. Dentre as razões identificadas para esse rompimento estão o medo de fracassar e a percepção de pouco esforço por parte de quem recebe a ação, no projeto.
Essa mesma autora afirma que a sobrevivência do relacionamento depende largamente das recompensas (isto é, o mentor receber respostas que indiquem que as suas ações estão produzindo mudanças no jovem). No início do trabalho, quando tais recompensas são baixas: "[...] eles acabam se dando conta de que o investimento pessoal necessário para trabalhar com adolescentes, por exemplo [de condições desfavorecidas] ultrapassa as suas previsões, particularmente se o envolvimento está o distanciando dos compromissos familiares e do trabalho" (RHODES, 2002, p.57).
Alteridade
Em Psicanálise, esse termo é muito útil para compreendermos a diferenciação fundamental entre o eu e o outro além da possibilidade de levar o outro em consideração e, portanto, ter empatia, interesse e disponibilidade para cuidar.
A Psicanálise é o saber mais consistente construído no último século para entender o funcionamento psíquico e as relações entre os seres humanos, seus desejos, angústias. Se nos ajuda a entender como nosso psiquismo se constitui e o que está em jogo na nossa relação com outros seres humanos, ela é fundamental para entender as motivações que levam uma pessoa a querer cuidar de outra, geralmente em situações de vulnerabilidade, e em ambientes tão distantes dela. Freud nos diz que um dos maiores problemas com os quais temos que lidar é nossa relação com outros seres humanos. Sendo assim, é curioso pensar nessa motivação para cuidar de quem tem tantos problemas. Podemos imaginar o quanto se torna complexa essa relação. É intrigante entender as motivações inconscientes que levam a isso.
Fazer o bem... a quem?
É muito frequente que as pessoas sejam movidas para o voluntariado por um desejo de reparar experiências malogradas de sua própria vida, de preencher faltas, de projetar no outro também todo o sofrimento e assim se sentir, digamos, purificado desse mal. Se olho o outro como estando numa situação de tanta penúria, isso me faz ver a minha vida mais leve, mais fácil, algo como: "Coitado do outro: ficou com toda a desgraça humana!!!". É impressionante isso, mas não é incomum esse tipo de atitude diante de uma população beneficiária, pessoas que dizem: "Quando estou aqui nesse abrigo, vejo tanto sofrimento que volto para casa achando minha vida uma maravilha!". Parece que quem está "fazendo o bem" para esse sujeito é a tal criança do abrigo, que lhe "faz o favor" de assumir "toda" a desgraça do mundo em sua vida e, assim, aliviar o sofrimento do voluntário (inerente à vida de todos nós).
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Os voluntários mostram desejo de ajudar alguém que precisa de apoio. Porém, ao longo do processo, é muito comum o abandono precoce da ação
Um dos maiores problemas referidos pelos gestores de ações voluntárias desse tipo é a baixa fidelização dos participantes
O que a Psicanálise também nos ajuda a pensar é que o voluntário espera ser investido afetivamente por parte daquela pessoa a quem oferece a sua ajuda, ser amado e reconhecido por sua dedicação, e, se isso não ocorre ou demora a ser demonstrado, a tendência é emergirem sentimentos hostis em relação àquela pessoa, num movimento psíquico defensivo (por exemplo, um voluntário, diante da suposta indiferença de um jovem a quem se põe a orientar, passa a se referir a ele como alguém pouco comprometido e irresponsável, esquecendo que sua função era justamente cuidar de alguém que atravessa um período crítico na vida e, portanto, pensar formas de lidar com essa pessoa e ajudá-la).
Narcisismo imperativo
São casos em que fica evidente o predomínio do autocentramento e o desejo de exaltação e enaltecimento de si mesmo sem limites, onde o eu se apresenta como onipotente e majestoso. Não é a pessoa que recebe a ação de cuidados, em sua alteridade reconhecida e aceita, a quem são lançadas as atenções e os investimentos afetivos, e sim o próprio voluntário cuidador (a si mesmo, portanto), que busca o reencontro com amores e gratidões maternas (ou seja, o reencontro com essa experiência infantil, que permanece como uma espécie de memória inconsciente), agora, na relação com o jovem. É um movimento nada incomum nos nossos dias, em que o narcisismo é imperativo e o espetáculo é a via em que se busca o engrandecimento do eu e a admiração por parte do mundo.
Freud diz que um dos maiores problemas é lidar com nossa relação com os outros. É curioso pensar nessa motivação para cuidar de quem tem tantos problemas
Joel Birman (2007, p.24 e 25), psicanalista brasileiro muito interessado nas questões do mundo contemporâneo, afirma que: "A autoexaltação desmesurada da individualidade no mundo do espetacular fosforescente implica a crescente volatilização da solidariedade. Enquanto valor, esta se encontra assustadoramente em baixa". Segundo este autor, a solidariedade seria própria das relações inter-humanas fundamentadas na alteridade, o que implica em que o sujeito reconheça o outro na diferença e singularidade, ou seja, alguém com história própria, desejos, modo de ser e não apenas alguém em quem se projete a si mesmo, seu modo de existir, seus ideais.
Na verdade, a chave para decifrar esse abandono precoce da ação está no funcionamento inconsciente, seus conflitos e ambiguidades. Escutar psicanaliticamente esses voluntários, levantando questões e fazendo apontamentos, pode levar a caminhos com possíveis efeitos terapêuticos, porque pode facilitar a circulação das palavras e promover redes de significação que levem a ampliar a percepção de si mesmo. Dessa forma, temos como desfechos possíveis o voluntário podendo encontrar um novo jeito de participar da vida do sujeito que recebe seus cuidados, criando um estilo de ajuda em que o outro seja genuinamente considerado ou podendo reconhecer seus limites, pelo menos no momento, para aquela ação ou, honestamente, admitir que não quer relacionar-se com aquela pessoa. Outros desenlaces, ainda, poderiam ser pensados. O que interessa é que sejam reflexos de uma percepção mais ampliada do seu mundo interno e de um encontro mais verdadeiro com o seu desejo, dando expressão ao eixo alteritário do sujeito.
Problemas mal resolvidos
Outra questão que se coloca a respeito do voluntariado é que as pessoas que se envolvem com essa ação estão, como a maioria dos seres humanos, preocupadas com seus próprios problemas psíquicos, mal ou insuficientemente resolvidos. O encontro com o outro que revela possuir algum tipo de fragilidade mobilizao intensamente, tal como ocorre com um terapeuta ou um médico, por exemplo. Como propõe Enriquez (1991, p.89), não podendo tratar os seus próprios conflitos, o risco que corre e que faz com que o beneficiário da ação também corra é de se apresentar como referência absoluta, inquestionável, que não suporta senão a reprodução de sua própria imagem (de sua opinião etc.) ou ainda de provocar um conflito afetivo na pessoa atendida, neutralizando suas potencialidades, seus interesses e desejos.
Desamparo primordial
Todo humano nasce em uma condição de pré-maturidade: como não sobrevive sozinho, portanto está em desamparo. Essa experiência deixa marcas no inconsciente de todos nós. A cada situação de desamparo que vivemos ao longo da vida, há uma espécie de reconexão com essa experiência primordial.
A pessoa que recebe os cuidados, por sua vez, pode se deixar seduzir por essa figura que se mostra tão potente, talvez numa ilusão de salvamento, aceitando o lugar de objeto do desejo do outro (o voluntário).
Observamos que como a ação solidária é comunicada aos beneficiários faz toda a diferença em como irão responder a elas. Aqueles que o recebem como uma caridade, algo de alguém que tem mais para quem é carente, estão mais vulneráveis a serem invadidos pelos ideais desse voluntário, que pouco está atento à singularidade do sujeito que está diante de si. que, embora vivam também dentro de uma imensa carência, mas têm a oportunidade de serem reconhecidos como sujeitos, sendo ouvidos, sendo autorizados a expressar seus desejos, sentindo-se respeitados como cidadãos, podem se beneficiar muito da ação dos voluntários que se empenham no desenvolvimento daquele grupo.
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As pessoas que se envolvem com o voluntariado estão preocupadas com os seus próprios problemas psíquicos, mal ou insuficientemente resolvidos


Para saber mais
Movimento do voluntariado
T radicionalmente, o movimento do voluntariado surgiu com um propósito assistencialista. Mais recentemente, vários movimentos de voluntariado têm tomado posições mais maduras, nos quais o grupo beneficiado é reconhecido em seus direitos, com trabalhos não só focados na compaixão, mas no genuíno interesse em promover a autonomia do sujeito beneficiário, a recuperação do que lhes é de direito.
O que observamos atualmente, nas correntes mais progressistas desse movimento, é que para colocarmos em ação nossa capacidade de continência, de cuidar do outro, é preciso estar aberto ao desconhecido, ao risco do encontro com esse desconhecido, sempre ameaçador, porque nos remete à parte estrangeira de nós mesmos, com seus afetos mais intensos e muitas vezes incômodos.
Evidencia-se, portanto, que uma ação benemerente, envolvendo relacionamento humano, é intensamente mobilizadora para todos os envolvidos e, portanto, merece uma atenção cuidadosa, sob o risco de extravios da direção benevolente e, nesse caso, acabar por não fazer o bem, como se propõe.
O altruísmo é fundamental para a vida em sociedade, porém, isso é algo que precisa ser desenvolvido, o que só pode ocorrer num grande trabalho de autoconhecimento e reflexão.
É possível traçar um paralelo entre o trabalho do voluntário que se põe a cuidar de pessoas com o trabalho do psicanalista, guardada as devidas proporções, evidentemente. O fato é que ambos se põem a lidar com o sofrimento alheio. Como psicanalistas temos como tripé fundamental em nossa formação, o estudo da teoria, a supervisão com um psicanalista mais experiente e um longo período de análise pessoal. Só assim nos vemos em condição de exercer esse ofício.
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As motivações inconscientes podem tanto indicar interesse em contribuir com o outro, como podem apontar uma necessidade de reconhecimento social
É muito frequente que as pessoas sejam movidas para o voluntariado por um desejo de reparar experiências malogradas de sua própria vida
As pessoas que se põe a cuidar de outras em programas de voluntariado precisam também de um mínimo de formação - o que envolve não só treinamentos, informação, mas espaços de reflexão, onde poderia se produzir um pouco de autoconhecimento e reflexão sobre a prática e assim ser possível a construção de programas de voluntariado mais efetivos.
Como diz a psicanalista Iisabel Khan em sua apresentação sobre o meu livro Voluntariado: uma dimensão ética: "Fazer um trabalho social, ajudar o próximo, só é possível se forem garantidas condições de reflexão, a supervisão [como conhecemos em Psicanálise], para que haja suporte a alteridade, aos estranhamentos, à potência criada em cada encontro. Só assim o outro - beneficiado - não estará a serviço do narcisismo do benfeitor, cativo de sua demanda de amor, de sua proteção, da 'boa vontade'. Um encontro que não se sustenta apenas na compaixão e que permite ao sujeito assistido se afirmar em seu lugar social, a partir de suas competências, resgatando aquilo que lhe é de direito."
Motivações egoístas ou altruístas?
As pessoas em programas de voluntariado precisam de um mínimo de formação, além de espaços de reflexão, para desenvolver a prática
Parece que há que se ter uma especial atenção aos trabalhos dos voluntários que se propõe a uma ação cuidadora diretamente com outro ser humano, isto porque as motivações inconscientes podem tanto indicar um genuíno interesse em contribuir com o outro (e nesse caso é preciso deslocar-se do autocentramento), como podem apontar para o uso do outro para atender às suas próprias questões psíquicas mal ou insuficientemente resolvidas (uma forte carência, uma imperiosa necessidade de reconhecimento social, um estranho afã de salvar o mundo a qualquer custo, certezas absolutas sobre o melhor modo de vida para o outro, etc.). Nnesse último caso, está claro que a ação voluntária, teoricamente tão benevolente, não teria praticamente nada de útil para quem a recebe.
Enfim, eis o grande desafio para o voluntário em sua função cuidadora: abrir mão de uma suposta onipotência, assim como de amarras narcísicas, além de suportar fazer face ao desamparo que irá confrontá-lo na realidade daquela relação, o que remeterá irremediavelmente ao seu desamparo primordial, doloroso de ser reeditado. Um esforço psíquico nada simples de ser realizado e, considerando que, via de regra, os voluntários são pessoas que não possuem eles próprios uma experiência de análise pessoal, estamos falando de vivências que se encontram no fio da navalha.
REFERÊNCIAS
BIRMAN, J. Mal-estar na Atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ENRIQUEZ, E. O Trabalho da Morte nas Instituições. In: KAES, R. (org.). A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
FERRARI, R.S. Voluntariado: uma dimensão ética. São Paulo: Editora Escuta, 2010.
RHODES, J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today's youth. Cambridge: Harvard University Press, 2002.
AGENDA
Evento de Formação para Ggestores e líderes de Programas de Voluntariado
Ocorre regularmente durante o ano, encontros com pequenos grupos com duração de 3 horas. Contato: voluntariadoanodez@gmail.com

Rachele Ferrari é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, atende em consultório em São Paulo e em Vinhedo, palestrante e consultora sobre o tema Voluntariado, assessora técnica do Programa de Mentoring Social da HP Brasil, autora do livro Voluntariado: uma dimensão ética. E-mail: rachele@sider.net

Fonte: Revista Psiquê

Jornalista ou copista multimídia?

Jornalista ou copista multimídia?
Acúmulo de tarefas, tirania da reatividade, redundância e pobreza dos conteúdos... Enquanto a Internet favorece o desenvolvimento de uma informação e de um pensamento alternativos, ela também exerce efeitos devastadores sobre a esfera do jornalismo profissional.
por Marie Bénilde
 Frédéric Lefebvre, deputado do departamento dos Hauts-de-Seine (região parisiense) merece ser ouvido. Este porta-voz da União por um Movimento Popular (UMP – partido da atual maioria governista) comunica a substância do pensamento da sua agremiação a respeito da mídia. O seu ataque contra a Agência France-Presse (AFP), aos seus olhos culpada por não repercutir a condenação de Ségolène Royal num processo de direito trabalhista, é muito revelador da percepção que o poder tem da influência dos novos meios de comunicação. Segundo ele, a AFP gera um problema ao não divulgar a comunicação do seu partido. Nem tanto em razão da importância desta agência em relação aos veículos da mídia, mais sim quanto a sua capacidade em alimentar com conteúdos os grandes portais na Internet. “A AFP fornece a linha editorial do Yahoo, do Orange, os quais difundem as informações para todos os franceses que navegam na Internet”, considera Lefebvre1.
De fato, os portais Yahoo, Orange ou Google figuram entre os sites mais consultados na França, junto com os do Le Monde ou do Le Figaro. No que vem a ser uma particularidade desses protagonistas nascidos na Internet ou oriundos das telecomunicações, eles agregam conteúdos provenientes de outros sites de informação e das notícias difundidas pelas agências de notícias, diferentemente dos veículos tradicionais que mobilizam redações dedicadas à sua produção online. Portanto, tal como estão configurados, esses novos suportes não possuem uma linha editorial propriamente dita. Desde o começo de junho de 2008, o site Orange.fr, consultado por 15,6 milhões de visitantes por mês, recorre aos jornalistas do Figaro, de propriedade do senador Serge Dassault, para que estes participem de um programa de entrevistas políticas cotidiano, e à Radio Classique, de propriedade de Bernard Arnault, para alimentar seu espaço com entrevistas com patrões ou atores da economia. A primeira página do portal, que destaca informações sobre serviços, esportes e lazer, delega à AFP.
Fortalecida pelo faturamento da sua poderosa matriz France Télécom (54 bilhões de euros), a Orange tem se posicionado como um veículo completo. O advento deste novo mastodonte cujo financiamento está configurado em torno da publicidade e consolidado pela massa de assinantes da sua oferta de serviços “triple play” (Internet-telefone-TV), ilustra a transformação dos meios de informação na era digital. Pois é retomando o modelo da agregação de conteúdos diversos rumo a uma multiplicidade de suportes que os veículos tradicionais pretendem encontrar sua salvação.
Foi assim que, sob a direção de Jean-Claude Dassier – o diretor de informação, de junho de 2008 a junho de 2009 –, o grupo TF1 articulou uma aproximação entre as redações de TF1, de La Chaîne Info (LCI) e do site LCI.fr com o objetivo de disponibilizar, por meio de imagens e de produções, uma plataforma única voltada para todos os canais.
Já o grupo Lagardère criou a entidade Lagardère News, descrita como uma “nova fábrica da informação”, compartilhada por todas as suas redações e todos os seus sites. As sociedades de jornalistas dos veículos da Lagardère (Europe 1, Paris Match, Journal Du Dimanche, Elle) alertaram para o “risco da diluição da identidade de cada título” em nome de um melhor rendimento e em detrimento da qualidade2.
Legitimada pela obrigação de fazer economia em grande escala, num momento em que o boom das receitas publicitárias na Internet ainda não compensa as perdas de lucros dos suportes tradicionais, a agregação dos conteúdos, e principalmente do vídeo, gera, seguramente, a maior audiência possível. Mas a que preço? Na iminência da realização de um congresso geral do setor da imprensa, anunciado por Christine Albanel3 para o último trimestre, um novo modelo de jornalista parece estar se implantando. O profissional da informação transforma-se num trabalhador de “multissuportes” e “multitarefas”4. Seja por meio do papel ou da tela de monitor, de um microfone ou diante de uma câmera, ele “fornece conteúdo”, uma paleta de “produtos” da qual uma parte crescente é acessível gratuitamente. Assim, ele é solicitado também a incentivar, enriquecer, e às vezes, verificar o bom andamento das contribuições produzidas no site pelos internautas.
Num futuro próximo, dominar uma câmera digital, utilizar as ferramentas de montagem de vídeo, apresentar e mediar debates num estúdio de TV, tudo isso será muito mais valorizado do que possuir conhecimentos aprofundados em determinados campos ou ser apto em realizar reportagens investigativas. Muitas redações já estão pedindo aos seus jornalistas para contribuírem para o site, fornecendo áudio, vídeos ou informações exclusivas, conteúdo este que é vendido em forma de pacote mensal módico para o usuário (de 48 a 68 euros mensais no Parisien-Aujourd’hui en France), ou até mesmo oferecido gratuitamente (como no Ouest-France).
Teríamos alcançado um novo patamar no exercício da profissão de jornalista? Ao que tudo indica, trata-se de instaurar junto com o usuário dos veículos de mídia uma relação revigorada que incorpore a palavra, o diálogo, um exercício que permaneceu ignorado por um tempo excessivo. A visão vertical de uma voz de autoridade repercutindo seu saber a partir de um acesso quase privativo às fontes (agências de notícias, instituições) seria substituída por um “jornalismo de bate-papo”, conforme explica Pascal Riché, o redator-chefe do site de informação Rue89, que se desenvolve com base na “troca de informações horizontal, aberta, interativa e iterativa” com o leitor5. Enquanto esse tipo de dispositivo pode parecer viável para os novos protagonistas da Web, ele não deixa de implicar em complicações e sobrecargas inéditas para os veículos de comunicação tradicionais. Em primeiro lugar, existe o risco de se criar uma discrepância sempre maior entre jornalistas-orquestras, capazes de tocar as partituras das novas tecnologias, e profissionais (raros) mais aptos em pesquisar e verificar fatos do que em manipular as ferramentas de apresentação e divulgação.
Sem dúvida essa guinada digital é mesmo indispensável para a sobrevivência dos veículos “históricos”. Mas, como no jornalismo tradicional, os efeitos induzidos pela busca da audiência máxima são numerosos e perversos. Tornando-se por sua vez agregadores de imagens e difusores de rumores – tal como ocorreu no site de Europe 1, por ocasião do anúncio prematuro, por parte de Jean-Pierre Elkabbach, da morte do apresentador de TV Pascal Sevran –, os veículos de comunicação cedem àquilo que o próprio Elkabbach, hoje o patrão da Lagardère News, chamava de “a ditadura da emoção” e de “imediatismo da aparência”. A razão disso é simples: a maior parte dos sites de informação receia perder a audiência daquilo que cria o “buzz” – o “burburinho” tão usado como estratégia de marketing – e engendra um valioso e lucrativo volume de acessos por parte dos usuários. Com isso, a imprensa torna-se o principal motor da vulgarização do político e da sua transformação num “show business”, uma tendência que, além do mais, ela denuncia simultaneamente.
Os defeitos do jornalismo online configurado para gerar audiência também podem ser medidos em função de uma completa desregulamentação da profissão. Afogado por uma constante enxurrada de notícias, o profissional recrutado pela sua capacidade de reação instantânea aos impulsos vindos da Internet está brincando de serpente mordendo o próprio rabo: ele repercute o que se sabe, reage àquilo que gera reações. Conforme mostra a produção ininterrupta de notícias mais ou menos anedóticas e de vídeos no site LePost.fr editado pelo Le Monde, a hierarquia da informação não é mais levada em conta num cibermundo em que o que vale é a mais recente notícia inédita. “O que é realmente importante em meio a essa vazão mecânica de notícias?”: esta é sem dúvida a única dúvida que o jornalista da era digital não pode ter. Contudo, o discurso patronal vangloria as virtudes de uma profissão regenerada pela sua aptidão em selecionar e em colocar “conteúdos” diversos nos trilhos. Provavelmente mais à maneira de um chefe de estação de trens que de um motorista de locomotiva. O trem da Internet não espera, mas ninguém sabe para onde ele vai.
Entretanto, o jornalismo digital também motivou o advento de sites independentes que desempenharam um papel próprio no quadro da contracampanha relativa ao referendo europeu de 2005. Ele permitiu o surgimento de canais de informação e de reflexão alternativos ao pensamento dominante que questionam as regras de conivência e subserviência aos poderes capitalísticos, políticos e econômicos. A crise do jornalismo de mercado, a sua desclassificação na opinião pública são imputáveis por uma boa parte ao advento de uma expressão livre e crítica na Internet. Terá esta emancipação condições para influenciar os sites dos grandes veículos de comunicação e para encorajar a impertinência dos seus jornalistas? A dúvida em relação a essa possibilidade é grande, pois o quadro de expressão definido pelos acionistas dessas empresas é demasiadamente estreito.
De fato, os proprietários apostam no acúmulo de audiência nos sites de comunicação abarrotados de espaços para vídeos que atribuem a si próprios a prerrogativa de inventar uma “nova escritura jornalística”. Na realidade, trata-se, sobretudo, de satisfazer a demanda por conteúdos multimídia para computadores conectados em redes de banda larga que obedecem a lógicas próprias das telecomunicações. Esse tipo de configuração dos sites, geralmente criada por diretorias de informática, assim como desvia do jornalismo, também incita à redução dos custos na imprensa. Este é o preço a ser pago, ao menos enquanto as receitas publicitárias na Internet não conseguem reequilibrar a queda dos lucros das publicações em papel – se é que elas conseguirão um dia.
À compressão digital corresponde a uma compressão jornalística: em maio de 2007, o grupo Hearst anunciou a supressão de cerca de 50 postos de jornalista no San Francisco Chronicle, e então lançou seis meses depois um serviço de vídeos financiado pela publicidade no site do jornal. “Os que tiveram de partir são jornalistas extremamente competentes que se dedicam à investigação e à cobertura da verdade, com toda independência e sem medo nem atitudes preconcebidas”, comentou Neil Henry, um docente em jornalismo na Universidade de Berkeley. Os cortes têm sido mais e mais frequentes nas redações dos diários estadunidenses: 200 redatores demitidos no Mercury News de San Jose, 100 no New York Times, e outros 100 no Union Tribune de San Diego. Desde o ano de 2000, a redação do Los Angeles Times passou de 1.200 para 700 pessoas. Quanto a jornalistas, os patrões da imprensa preferem, daqui para frente, os geradores de audiência participativa. Com isso, a indústria das torneiras de comentários tem um futuro radiante pela frente.
Marie Bénilde é jornalista, autora de On achète bien les cerveaux: la publicité et les médias, Paris, Raisons d'Agir, 2007.

Fonte: Le Monde Diplomatique

Um código de barra para identificar os embriões

Um código de barra para identificar os embriões
Partindo de recente pesquisa que visa implantar em cada célula de embrião reproduzido in vitro um dispositivo de silício que serve como código de barra, o autor questiona se não é hora da sociedade civil se engajar em reflexões éticas e discutir a política dessas pesquisas sem deixar que o mercado decida por ela
por Hervé Le Crosnier
Na França, o Comitê consultivo nacional de ética para as ciências da vida e da saúde acaba de publicar um relatório sobre pesquisas relativas às células–tronco1. O assunto está por toda a imprensa. Esse texto evoca pontos importantes sobre as regras de ética que podem ser traduzidas nas leis a fim de permitir às sociedades conduzirem políticas científicas adequadas às várias concepções do que significa o ser humano. É certo que diferenças, e até mesmo divergências, existem e esse debate sobre células-tronco é também, em senso inverso, uma maneira para os pesquisadores em biomédica fazerem evoluir as normas de ética que conduzem a uma melhor compreensão das atividades humanas, colocando em jogo as noções de vida e de pessoa.
É um processo dialético demorado este entre a pesquisa e a sociedade, mas permite evitar que trabalhos científicos ou de engenharia do ser vivo levem a transformações da nossa própria concepção de humanidade, sem que as pessoas emitam sua opinião a respeito do assunto, com todas as contradições e pontos de vista que formam as abordagens do mundo. Contudo, certas pesquisas em engenharia de reprodução humana parecem impor mudanças radicais sem que tenhamos tempo de pensar nas conseqüências. Um exemplo foi uma pesquisa publicada no dia 18 de novembro, que, a meu ver, não chamou a devida atenção: pesquisadores catalães implantaram códigos de barra no interior de células de embriões de ratos e querem reproduzir logo a experiência em embriões humanos2.
A ordem das coisas e a engenharia do ser vivo
De todas as regras que parecem divididas pelas diferenças abordadas no debate ético a cerca do embrião, existe uma comum: o embrião não é uma “coisa” como as outras. Em termos éticos isso significa que é preciso “evitar toda coisificação do embrião”.
“Seria excessivo considerar o embrião em fase pré-implantatória como um simples aglomerado de células de origem humana, como também seria excessivo o consagrar como pessoa humana em potencial. A noção de ‘processo embrionário em andamento’ testemunharia talvez o enigma que envolve a natureza exata do embrião nos primeiros estágios de vida. De qualquer maneira, e pela própria razão desse enigma, o Comitê afirma sua ligação à ideia segundo a qual o embrião humano deve, desde sua formação, se beneficiar do respeito ligado a sua qualidade.” (Portaria no. 67 de 18 de janeiro de 2001 sobre o anti-projeto de revisão das leis de bioética).
Essa abordagem proíbe, por exemplo, a comercialização do embrião. Ela proíbe também os trabalhos sobre os embriões que seriam fabricados apenas para servir de objeto de laboratório. Uma interdição confirmada pela Convenção de Oviedo3: “A constituição de embriões humanos para fins de pesquisa é proibida.”
Podemos, apesar disso, questionar a finalidade de certas pesquisas em engenharia genética será que elas têm realmente fins terapêuticos e não precisam de embriões humanos para meros fins de pesquisa? Uma interrogação levantada, por exemplo, pela pesquisa mencionada mais acima, conduzida pela Universidade Autônoma de Barcelona, publicada no dia 18 de novembro de 2010 pelo jornal Human Reproduction 4; trata-se de uma pesquisa comum a biólogos (Departamento de Biologia Celular, de Fisiologia e Imunologia da UAB) e de pesquisadores do instituto de microeletrônica de Barcelona, visando implantar em cada célula do embrião um dispositivo em silício podendo servir de código de barra”, segundo os termos empregados por pesquisadores no título de seu artigo.
É a própria universidade que assegura a divulgação do artigo publicando uma nota em seu site da internet5. Uma versão para a coletividade sobre a pesquisa que será amplamente usada em sites anglo-saxões (uma pesquisa no Google, no dia 5 de dezembro de 2010, permite constatar que as cinco primeiras páginas estão ocupadas por sites que copiam exatamente o press release). Poderia haver muito a dizer sobre essa nova maneira de valorizar as pesquisas por meio de releases provenientes das universidades, mas também sobre o servilismo dessa internet que dizemos estar aberta a tudo, mas no que diz respeito ao essencial não perde tempo com análise. Na verdade, todos esses sites apenas utilizam o comunicado sem comentá-los, sem se perguntar, sem aplaudir ou se indignar... Uma pobreza da crítica científica6 que nos deixa desarmados
A pesquisa em torno dessa técnica de implantação foi feita em embriões de ratos. A equipe de biólogos injetou o código de barras de silício desenvolvido por especialistas em eletrônica.  Esse é lisível por meio de um microscópio. Introduzido no espaço perivitelino, que está localizado entre a zona translúcida e a membrana plasmática do óocito, o dispositivo deve desaparecer quando o embrião for implantado no útero... A experiência foi bem sucedida com algumas exceções.
Uma nova façanha da técnica biológica e da microeletrônica... Mas o objetivo dessa pesquisa merece que paremos um instante. Nesse exato momento, os embriões recolhidos ou congelados são identificados nas próprias provetas. As verificações, feitas por duplo controle humano, são, assim, mais longas e minuciosas, os conteúdos são regularmente trocados de recipientes durante a Assistência Medica à Procriação. Para os autores da matéria, trata-se de acelerar e assegurar o processo, o que segundo o site do transhumanista Raymond Kurzweil (um dos únicos a acrescentar pequenos comentários ao texto da Universidade7) deveria permitir melhores taxas de sucesso às fecundações in vitro (FIV)...
Contudo nós não podemos ser ingênuos a esse ponto.
Essas mudanças no procedimento de assistência médica à procriação não são somente “garantias” de acompanhamento do embrião... O próprio termo código de barra utilizado pelos pesquisadores remete à ideia de “comércio” que ameaça todo o filão da fecundação in vitro. Acelerar o processo para lhe assegurar um melhor resultado seria efetivamente um progresso... Mas por que, além dos embriões destinados a re- implantação imediata, testar o método nos embriões congelados? Porque uma vez congelados, esses últimos poderiam ser trocados entre clínicas ou virar matéria prima, certificados diretamente no embrião e não somente na embalagem.
Estamos apenas no estado de experiência nos embriões de ratos, mas a mesma equipe de pesquisadores acaba de obter autorização do Ministério da Saúde do governo da Catalunha para passar à experimentação humana. No entanto, considerando o projeto, como tal pesquisa vai poder ultrapassar a regra ética do uso somente de embriões “além do número”, embriões excedentes depois de uma operação de fecundação visando à reprodução? Os embriões seriam “objetos de laboratório”.       
Podemos então contestar o fato de que essa pesquisa corresponde a um objetivo terapêutico. Seria muito inocente acreditar cegamente nas declarações que recaem sobre a melhoria do processo da FIV... Os códigos de barra induzem a outra abordagem que vai além da ajuda aos casais inférteis. Contudo, são justamente esses desvios que procura evitar o Comitê consultivo nacional de ética: “Tratar o embrião humano somente como um meio de experimentação é praticamente ser favorável a integrar seu ser na ordem das coisas.” Em sua Portaria no. 8 relativa às pesquisas e utilização dos embriões humanos in vitro para fins médicos e científicos, o CCNE indicava: “Nao devemos fazer, mesmo com o consentimento dos genitores,  fecundações com o objetivo de pesquisa. Ela levaria a fazer de embriões humanos simples meios ou puros objetos.” (relatório CCNE no. 118, p.52).
Esse passo suplementar na direção da comercialização dos embriões codificados, selados e reconhecidos, que passam a herdar essa ou aquela característica genética... está absolutamente dentro da lógica do que está se tornando a fecundação in vitro.
Os desvios das clínicas de fertilização
As clínicas especializadas americanas gabam-se de sua abordagem em todos os sentidos: “Somos uma clínica especializada nos tratamentos de infertilidade para os homens e para as mulheres. Nossos serviços compreendem a fecundação in vitro (FIV), a gestão da doação de ovos e ovócitos, o diagnóstico genético pré-implantação, o congelamento de embriões, a fecundação in vitro com microinjeção intracitoplásmica de espermatozóide (ICSI), e a livre escolha do sexo (menina ou menino)”. Anuncia assim o Davis Fertility, Inc.
Entramos em uma época em que os mais ricos do planeta vão poder se valer dos recursos das clínicas para escolher as características de sua descendência. Começamos a falar em designer babies. O diagnóstico genético da pré-implantação é um teste realizado em um embrião de três dias, quando ele dispõe de apenas de seis células. O que permite diagnosticar doenças genéticas graves antes da implantação. Contudo, a aceleração dos tratamentos técnicos, o uso da informática, os conhecimentos estatísticos das ligações entre as zonas do DNA e os traços físicos (cor dos olhos, dos cabelos, tamanho etc.) permitem ir bem além no uso do teste, especialmente para escolher o sexo, e em breve, outras características.
A seleção do sexo está autorizada nos Estados Unidos e várias são as clínicas que propõe esse serviço. Assim, uma enquête de 2006 feita por Johns Hopkins Hospital mostra que quase metade das clínicas que praticam o diagnóstico possibilitam a escolha do sexo, 3% delas atendem até mesmo pedidos mais exagerados dos pais, como que o filho de um casal de surdos também seja surdo, afim de melhor compartilhar a cultura e a realidade dos seus pais. É todo um setor, que dificilmente podemos chamar de “médico”, que se desenvolve em torno das clínicas de fertilização.    
Um estudo feito, em 2007, pela New York University School of Medicine publicado na revista Journal of Genetic Counseling tinha a intenção de distinguir as propostas comerciais das clínicas, frequentemente usadas por jornais, das expectativas do público. Sua conclusão é essencialmente otimista: “A grande maioria das pessoas que respondeu a nossa enquete é favorável a testes genéticos complementares para despistar doenças, mas não estão de acordo com as melhorias. Não parece que a hora do designer baby esteja próxima”8. Esse otimismo poderia ser contrabalanceado pelas condições do próprio estudo. Trata-se de questionários propostos a pacientes do Programa de Genética Humana pelo Conselho Pré-natal da Universidade de Nova Iorque, antes da sua entrevista. No entanto, apenas 45% das pessoas responderam. A metade dos 999 participantes recusa qualquer teste genético.
E apesar de não serem majoritários, 10% dos participantes aceitariam fazer o teste para aumentar as competências atléticas; 12,6% para obter uma inteligência superior; 10,4% pela estatura alta e 9,2% para aumentar a longevidade. Números que para mim não são negligenciáveis, tanto que é necessário dobrá-los para os encaixar com o número de participantes que querem testes genéticos. Podemos concluir que existe, realmente, um “mercado de nicho” nutrido pelos fantasmas de uma parte não negligenciáveis de pessoas que querem controlar geneticamente seus descendentes. E como todo mercado de nicho, esse é “empurrado pela tecnologia”. Ele se desenvolverá em função da oferta proveniente das clínicas, que em espiral, reforçará a aceitação social dessa nova eugenia...
A escolha de fazer certo tipo de pesquisa orientada no sentido dessa figura de um “homem melhorado” vai acelerar essa espiral. Existem formas de conivência entre essa comercialização da reprodução seletiva pelas clínicas e as “pesquisas” sobre as técnicas reprodutivas e a genética das populações humanas. Assim, uma matéria publicada, em 2007, no jornal Nature Genetics descreve um método para determinar uma correlação entre o genoma e a cor dos cabelos, dos olhos ou a pigmentação da pele9. O pesquisador procura não ser repreendido: “Eu me oponho com veemência que meu trabalho seja utilizado para produzir crianças sob medida...” No entanto, esse tipo de trabalho inspira a clínica The Fertility Institutes que anuncia a possibilidade de, em breve, escolher a cor dos cabelos, dos olhos... e mais ainda!10 O doutor Steinberg que dirige a clínica, declara que: “A seleção das características é um serviço e nós contamos oferecê-lo em breve”11.
É também nesse contexto que a experiência dos biólogos catalãs se reveste de sentido. Quando teremos realizado esses diagnósticos pré-implantação sobre as células embrionárias contendo um código de barras, poderemos facilmente abrir um banco de dados indicando os traços detectados por trás dessa identidade única... congelar o embrião, e utilizar “sob encomenda”.
Portanto, todos esses pesquisadores afirmarão que fizeram isso “pela ciência”, com plena independência científica. Eles terão recebido financiamentos e autorizações. É previsível, até mesmo, que os profissionais da informática, os quais escreverão os algorítmos de exploração dos bancos de dados no futuro permitindo coincidir os desejos dos pais, sua própria morfologia e as características dos embriões disponíveis no mercado, estarão interessados apenas pelo desafio técnico que isso representa.
Política da missão cumprida
É chegada a hora que as sociedades civis se perguntem sobre as escolhas políticas das pesquisas com as quais estão comprometidas, sem deixar aos mercados, que se apóiam sobre os fantasmas mórbidos de alguns privilegiados, o cuidado de parasitar em nome de seus interesses imediatos, as reflexões éticas e políticas sobre as regras comuns que nossa sociedade necessita.
Pois uma vez que a técnica existe e um mercado de nicho para casais afortunados se fixa na esfera econômica, os desvios vão se acelerando, ao ponto que, às vezes, fica muito tarde para refletir. O mito dos “bebês design”, mesmo se está longe de se concretizar, acaba criando um novo mercado para o setor de testes e também para a organização de um circuito econômico da procriação “melhorada”, além de questionar várias considerações que tocam o mais profundo da nossa concepção antropológica.
Um dos sintomas dessa oscilação em favor de uma indústria do “bebê-design” pode ser constatada na escolha decisiva nem um pouco inocente dos jurados do Prêmio Nobel, que concederam, em 2010, o prêmio de medicina e de psicologia a Robert G. Edwards. Este é o biólogo que permitiu o nascimento de Louise Brown, primeira “bebê proveta”, em 1978. A partir dessa data, essa proeza da engenharia biológica possibilitou o nascimento de 4 milhões de crianças para os casais que optaram por se submeter ao procedimento. Isso merece ser recompensado, mas trata-se de uma descoberta relevante da categoria de um prêmio Nobel? Sabemos que os prêmios Nobel têm frequentemente uma clara dimensão de política científica. E esse aqui, chega no momento em que todas as sociedades debatem questões étnicas concernentes às pesquisas sobre o embrião e as células tronco, visa certamente validar os propósitos, às vezes, provocadores de Robert Edwards, sua escolha de colocar a “ciência” e principalmente a questão da fecundação, fora do olhar das sociedades e das normas jurídicas e políticas. Em uma matéria de orientação publicada, em 1971, no jornal Nature, ele defende o impedimento de toda forma pública do enquadramento da pesquisa e conclui com grande entusiasmo científico: “Os cientistas devem ir na frente das opiniões, fazer lobby para obter leis e regras na esperança de que as atitudes majoritárias da sociedade, tais quais se encontram nas decisões legais, amadureçam em um ritmo que não ficará muito em discordância com a transição entre uma pesquisa e suas aplicações técnicas”12.
Existe um verdadeiro dilema para o pesquisador, entre seguir sua própria escolha ou escutar as reticências sociais. A questão torna-se cada vez mais urgente à medida que se desvanece a fronteira entre a pesquisa fundamental e as aplicações, e mais ainda nas ciências da vida, quando os entraves acabam se baseando na própria definição do ser humano. Mas a religião científica não saberia ser uma solução.
Se hoje o professor Edwards está muito doente até para se dar conta de que recebeu o prêmio Nobel13, ele declarou em 1999: “Em breve, será um pecado dos pais ter um filho que carrega o pesado fardo das doenças genéticas. Entramos em um mundo, no qual devemos levar em consideração a qualidade dos nossos filhos14.” Porém, sabemos todos, socialmente,  em qual delírio coletivo podemos levar uma tal concepção eugênica  do mundo. E é inquietante que a Academia Nobel possa enviar tal mensagem no momento em que os partidários do “bebê design” e os negociantes da procriação, que é mais “controlada”, do que assistida, já estejam tão em evidência.
Detalhe interessante, o artigo dos pesquisadores catalãs sobre os códigos de barra dos embriões foi publicado no Human Reproduction, um dos jornais mais renomados no seu domínio, e criado por... Robert Edwards.
Hervé Le Crosnier é pesquisador da Universidade de Caen.

1“Parecer no. 112. Uma reflexão ética sobre a pesquisa das células de origem embrionária humana, e a pesquisa sobre o embrião humano in vitro”, Comitê consultivo nacional de ética pelas ciências da vida e da saúde. Parecer no. 112.
2 Agradeço à Dorothée Benoît – Browaeys da Associação Vivagora de ter me informado sobre esses trabalhos. A vigilância associativa sobre as ciências  e engenharias sobre o ser vivo é central na situação atual.
3 “Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e da dignidade do ser humano em relação às aplicações da biologia e da medicina; Convenção sobre os Direitos do Homem e da biomedicina”, Oviedo, 18 de novembro de 2010.
4 “A novel embryo identification system by direct tagging of mouse embryos using silicon-based barcodes”, Sergi Novo, Leonardo Barrios, Josep Santaló, Rodrigo Gómez- Martínez, Marta Duch, Jaume Esteve, José Antonio Plaza, Carme Nogués e Elena Ibánez, Human Reproduction, dezembro 2010.
5 “Researchers insert identification codes into mouse embryos”, Universidade Autônoma de Barcelona, 19 de novembro de 2010.”
6 O termo “crítica científica” proposto por Jean-Marc Levy – Leblond e retomado por Jacques Testart me parece consideravelmente interessante: “Como a crítica de arte ou a crítica literária, a crítica da ciência, que nao é absolutamente um inimigo das ciências, se autoriza a dar opiniões, mais do que aplaudir religiosamente  todas as produções de laboratório.”
7“Scientists attach barcodes to mouse embryos – human ones coming soon”, 26 de novembro de 2010.
8 “Consumers` Desire  toward  Current and Prospective Reproductive Genetic Testing”, Feighanne Hathaway, Esther Burns and Harry Ostrer, Journal of Genetic Counseling Volume 18, no. 2, 137-146.
9“Genetic determinants of hair, eye and skin pigmentation in Europeans”, Nature Genetics 39, 1443-1452 (2007).
10 Advertência: o site não permite mais conseguir o texto desse anúncio... mas o motor de pesquisa interna do site propõe todavia a resposta, para a pergunta da qual só resta o título: “Coming: select eye color, hair color and more – What `s New”.
11 Citações extraídas a partir de um artigo que me inspirou muito: “A Baby, Please. Blond, Fleckles – Hold the Colic”, Gautam Naik, The Wall Street Journal, 12 de fevereiro de 2009.
12 “Social Values and Research in Human Embryology”, Robert G. Edwards & David J. Sharpe, Nature 213, 87-91 (14 de maio de 1971).
13“Pioneer of in Vitro Fertilization Wins Nobel Prize”, Nicholas Wade, The New York Times, 4 de outubro de 2010.
14 “Science friction”, The Guardian, 22 de setembro de 1999.

Fonte: Le Monde Diplomatique