Aposentado monta casa antienchente e sirene de alerta em SP


Djalma Kutxfara, 71, é voluntário da Defesa Civil e conta em casa com pluviômetro, portões que são verdadeiras comportas e um sistema de sirenes que alerta seus vizinhos do Jardim Jussara, na zona oeste de São Paulo, quando haverá enchente no local. Ele é informado pelas autoridades quando as chuvas ameaçam a região e retransmite o alerta com seis sirenes que construiu em seu telhado. Djalma montou também um sistema com válvulas e bomba para deixar sua casa a falso da força dos desbordamentos do córrego Pirajuçara.

I Simpósio de Psicologia das Emergências

I Simpósio de Psicologia das Emergências

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Data: 05 de fevereiro de 2011 

LOCAL:  Hospital Phillipe Pinel - Av. Venceslau Brás, nº 65. Botafogo - Rio de Janeiro


OBJETIVOS 

Transmitir conhecimentos teóricos e práticos na abordagem de emergência nas catástrofes.
Auxiliar a população da região Serrana do Rio de Janeiro.



PROGRAMA

9:00   - As fases do luto – Acadêmica de medicina Lislie Schoenstatt Abram
9:30   - A espiritualidade como apoio em tragédias– Psicóloga Denise de Assis(CRP 05/ 35152)
10:00  – Técnicas de auto-hipnose como apoio em tragédias – Psicóloga Thelma Loures (CRP 05/30501)
10:30  - A terapia breve nas catástrofes – Psicólogo Gil Gomes
11:00  - A terapia do Amor – Psicóloga Marylza Ultra (CRP 05/ 4518)
11:30  - Transtorno do Estresse agudo e Transtorno do Estresse pós-traumático - Acadêmicos de psicologia - Bruno Villela e Clemilson da Silva
12:00  - A resiliência no processo de reconstrução de vida – Psicóloga Norma Manhães (CRP 05/12627)
12:30  – Psicologia hospitalar nas emergências – Psicóloga Marta Elini dos S. Borges (CRP 05-5894)
13:00  – Mesa redonda - A doação do IBH para as vítimas da catástrofe das chuvas na região serrana do RJ – Psicóloga Edélia de Souza (CRP 05/ 34219) e Psicóloga Márcia Consentino ( CRP 05/ 33234)


COORDENAÇÃO


Clystine Abram – Psicóloga – CRP-05/15048

Taxa de inscrição: 1 Quilo de alimento, que será doado às vítimas da Região Serrana- RJ

Profissão de intérprete de LIBRAS surgiu nas igrejas cristãs


Profissão de intérprete de LIBRAS surgiu nas igrejas cristãs

Atividade missionária com surdos firmou mercado de trabalho do intérprete da Língua Brasileira de Sinais

Desde os anos 1980, as Igrejas protestantes são o principal reduto de formação de intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). É de lá que também surgem os primeiros pesquisadores sobre o assunto e, principalmente, a consciência da importância da comunicação com surdos por meio de sinais. É o que constata César Augusto de Assis Silva, cientista social e autor da tese de doutorado Entre a deficiência e a cultura: Análise etnográfica de atividades missionárias com surdos, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Segundo o pesquisador, a igreja foi a primeira instituição a promover esse tipo de educação, já que instituições laicas não abrangiam atividades para pessoas com deficiência auditiva. "Os protestantes (luteranos e batistas) foram os que tiveram atuação mais forte no trabalho missionário utilizando a LIBRAS porque trataram os sinais como uma linguagem que devia ser levada a sério. A igreja católica, que foi a primeira a promover a educação de surdos, historicamente prezou mais o ensino da oralidade, apesar de atualmente também utilizar sinais", explica Assis Silva.

A partir desse pioneirismo das igrejas protestantes, surgiram os primeiros intérpretes e intelectuais dispostos a estudar a língua de sinais, que começaram a ocupar uma posição de grande relevância na relação entre surdos e não surdos, no movimento social, em instituições universitárias e no mercado. "Se uma pessoa com surdez quisesse reivindicar algo, falava com o intérprete, que fazia a tradução do que era dito. Essa foi uma das características que estimulou a atuação do intérprete como um profissional do mercado de trabalho", diz o cientista social.

Atividade missionária
Analisando documentos históricos, dicionários e matérias de evangelismo, visitando ambientes com pessoas cristãs (igrejas, congressos e acampamentos) e entrevistando fiéis, pastores, padres, ativistas políticos, linguistas, pedagogos e intérpretes, Assis Silva notou que as atividades de evangelização com surdos desempenhavam um papel missionário muito semelhante às atividades de missões que são realizadas quando membros da igreja viajam para outros locais, a fim de levar o evangelho a outras culturas e outros contextos. "É possível entender essa atitude como uma tentativa de inserção no mundo das pessoas com surdez também, adaptando-se ao contexto delas. Isso foi realizado, sobretudo, pelos batistas", conta o pesquisador.

Há uma terceira igreja cristã que também foi analisada pelo cientista social: as Testemunhas de Jeová. "Essa igreja fundou congregações específicas para surdos, onde todas as pessoas usam língua de sinais. Como a pregação também é feita dessa forma, não é necessária a atuação do intérprete, diferentemente de igrejas protestantes e da igreja católica", diz Assis Silva.

A partir dessas congregações, o pesquisador também notou que há sinais específicos, adaptados para cada instituição. "Entre as testemunhas de Jeová, por exemplo, não há sinais como alma ou inferno, porque isso não faz parte das crenças dessa instituição. Para essas palavras, são feitos os sinais que representam carne e sepultura, respectivamente". O cientista social diz que a palavra "cristão", nas três instituições estudadas, são feitas de forma diferente, retratando o católico, a testemunha de Jeová e o crente (forma como se autodenomina o protestante).

Português para surdos
Assis Silva diz que as reivindicações políticas, desde os anos 1990, são pela promoção da educação bilíngue para pessoas com surdez. "De acordo com esse modelo de educação, a primeira língua que os surdos aprendem é a LIBRAS. O português deve ser aprendido como segunda língua", explica.

O pesquisador conta que a mobilização pelo ensino e aprendizado da Língua Brasileira de Sinais está crescendo em todo o País. "Hoje há a cursos de graduação que formam tradutores e intérpretes em LIBRAS/português, bem como cursos de Letras LIBRAS. A conquista desse espaço é muito importante para a disseminação dessa língua e inclusão social de pessoas surdas", diz.

Segundo Assis Silva, essas transformações vêm no bojo do reconhecimento legal da LIBRAS, por meio da Lei Federal 10.436, de 24/04/2002, regulamentada pelo Decreto Federal 5626, de 22/12/2005. Como o pesquisador demonstra em sua tese, agentes religiosos foram fundamentais para a consolidação dessa normatização jurídica da surdez

Fonte:  Revista Leituras da História

Neurônios e chips

Neurônios e chips
por João Teixeira


Imagem: Shutterstock
No seu livro A Redescoberta da Mente, publicado em 1992, John Searle descreve um curioso experimento mental, no qual o cérebro de uma pessoa era progressivamente substituído por chips de silício. Tudo se passa como se partes do cérebro dessa pessoa se deteriorassem devido a alguma doença desconhecida e a única maneira de contornar a situação fosse substituí-las, gradativamente, por chips que executariam as mesmas funções cerebrais.
Searle não estava preocupado com os detalhes técnicos de uma cirurgia desse tipo e sim com as suas consequências para uma pessoa que recebesse esses chips. Ele perguntava o que ocorreria do ponto de vista subjetivo. Como nos sentiríamos com um cérebro com uma parte biológica e outra não? Como seria nossa experiência do mundo com um cérebro integrado a uma máquina, ou, no final das contas, com o cérebro transformado em uma máquina? Ou, em outras palavras, que tipo de pós-operatório poderíamos esperar dessa cirurgia progressiva?
Searle nos fala de três possibilidades. A primeira seria o sucesso total da cirurgia. As funções vitais, a consciência e o comportamento se manteriam intactos. Nada aconteceria; a substituição seria perfeita. A segunda possibilidade seria a redução gradual da experiência consciente. Na medida em que os neurônios fossem substituídos por chips, o seu campo de consciência iria se estreitando. Da mesma maneira que o campo visual de uma pessoa que sofre de glaucoma vai se fechando.
A terceira possibilidade seria a de que os comportamentos se extinguissem sem, entretanto, haver perda da consciência. Dá para imaginar algo semelhante à situação do filme O Escafandro e a Borboleta, que foi baseado em fatos reais, no qual o personagem principal tinha perdido toda e qualquer possibilidade de se mover, mas ainda mantinha os olhos abertos e podia saber tudo o que se passava à sua volta. Essa é, sem dúvida, uma situação cruel e angustiante.
Para os filósofos da mente é a segunda possibilidade que mais interessa. Afinal, o que significa uma redução gradual da consciência? Seria uma perda progressiva de estados subjetivos como, por exemplo, a percepção de cheiros e cores? Isso equivaleria a uma perda dos qualia, ou seja, dos estados intrinsecamente subjetivos, o que nos transformaria, aos poucos, em uma espécie de robô. Essa é também uma possibilidade angustiante, pois como seria ser um robô? A angústia viria principalmente do fato de não conseguirmos sequer nos imaginar no lugar de um robô. É mais fácil tentarmos nos colocar no lugar de um morcego do que no de Deep Blue, o famoso computador enxadrista da IBM.
Retomando o experimento de Searle, David Chalmers, no seu livro The Conscious Mind, publicado apenas quatro anos depois do de Searle, nos levanta uma hipótese interessante. Se a consciência for gradualmente se reduzindo, nossa percepção das cores tornar-se-á menos intensa, pois os qualia serão menos intensos. Um vermelho que antes era percebido como extremamente vívido tornar-se-á um vermelho comum e, em seguida, alaranjado, até por fim desaparecer. Chalmers nomeou essa ideia estranha de fading qualia.
Imagine agora uma maçã não muito madura, com partes vermelhas e outras rajadas de verde. Se você tiver perdido a capacidade de ver coisas vermelhas, sem prejuízo das outras cores, verá apenas parcialmente a maçã. Sua percepção teria se tornado caótica em algum momento da substituição de neurônios por chips. Mas será que nos daríamos conta disso? O mais estranho será tentarmos imaginar a experiência de não ver o vermelho na maçã.
João de Fernandes Teixeira é Ph.D. pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos. www.filosofiadamente.org
Poderíamos viver, talvez, um período intermediário de angústia, no qual ainda tentaríamos ver o vermelho. Mas certamente essa angústia desapareceria com a extinção do vermelho na nossa consciência. Tudo se passaria como em doentes que sofrem de Alzheimer. No início, eles sentem uma forte angústia pela perda de alguns itens de memória e tentam desesperadamente se lembrar deles. Contudo, na medida em que a doença avança, eles vão progressivamente perdendo o próprio sentimento de esquecimento, como se a supressão de memória causasse uma perda tão radical que eles não soubessem sequer o que esqueceram.
O estreitamento da consciência não deve ser muito diferente. A perda progressiva de consciência sugerida por Searle talvez não seja nem tão séria nem angustiante do ponto de vista da primeira pessoa. Ou seja, não haveria tanto desconforto nos pós-operatórios da substituição de neurônios por chips.
Mas temos de considerar outras possibilidades de pós-operatório que parecem não terem sido notadas nem por Searle nem por Chalmers. Poderemos transmitir dados para os chips implantados no cérebro. Já pensou transferir o conteúdo de uma biblioteca para o cérebro de alguém? O que aconteceria com essa pessoa ao invocar a lembrança de algo que foi implantado na sua memória sem ter passado pela sua consciência? Como classificar mentalmente a lembrança de uma coisa da qual não fomos conscientes? Será que ao invocá-la tenderíamos a colocá-la no domínio da memória ou no da imaginação?
Creio que a lembrança de algo do qual não fomos conscientes terá uma característica distintiva. Ela será acompanhada por uma sensação de déjà vu, ou seja, de uma lembrança inesperada de algo que nunca foi percebido e que se intrometeu na nossa memória. Essa é a origem da sensação de estranheza que acompanha o déjà vu. Isso poderá ser um desconforto psíquico para alguns, para outros não.
Teremos de esperar alguns anos para saber se estas especulações são corretas. Mas poucos. Os implantes de chips cerebrais já estão se tornando uma realidade.

Fonte: Revista Filosofia - Editora Escala- Edição 54

Poder e mentira



Poder e mentira
por Flávio Paranhos



Imagens: divulgação
Em O príncipe da Pérsia, uma mentira leva o protagonista a promover uma guerra. Para Kant, as mentiras são inaceitáveis; para Weber, devem-se levar em conta as consequências da verdade

Flávio Paranhos é Médico (UFG) doutor (UFMG) e Research Fellow (Harvard) em Oftalmologia. Mestre (UFG), doutorando (UFSCar) e Visiting Fellow (Tufts) em Filosofia. Autor do livro de contos Epitáfio e coordenador da Coleção de Filosofia & Cinema (Nankin Editorial).
O que poderia haver em comum entre filmes tão distintos quanto O príncipe da Pérsia: As areias do tempo, Zona verde e Kafka? Os dois primeiros são de 2010 e o último é de 1991. Todos têm estrelas em seus elencos - Ben Kingsley, Matt Damon e Jeremy Irons, respectivamente.
O príncipe da Pérsia: As areias do tempo é uma produção da Disney inspirada em um videogame de autoria de Jordan Mechner (isso mesmo, videogames têm autoria!), com roteiro de Boaz Yakin, Doug Miro e Carlo Bernard e direção de Mike Newell. Para aqueles que, como eu, confessam alguma desconfiança quanto a filmes da Disney serem capazes de fazer algo mais do que entreter, e por isso estranham não só a presença de um filme desses aqui, como também a citação dos roteiristas, explico-me.
O príncipe da Pérsia é uma espécie de alegoria da guerra no Iraque promovida (a palavra, como veremos, é 'promovida' mesmo) pelos Estados Unidos de George Bush filho. O tal príncipe do título é o filho adotivo do poderoso rei da Pérsia, guerreiro hábil e nobre, como soem ser os protagonistas nesses casos. Ele, seus irmãos e o tio (Kingsley) decidem invadir a cidade sagrada Alamut, por suspeitarem que seus governantes estivessem fazendo armas e as vendendo aos inimigos da Pérsia. Invasão realizada, inimigo dominado, nada de achar as tais armas.
O príncipe cai numa armadilha e é acusado de matar o próprio pai, que desaprovara a decisão. Depois de passar por várias aventuras, das quais, claro, sempre sai ileso, o nobre príncipe descobre o segredo por trás da invasão, a traição do tio e, claro, conquista o coração da princesa que o esnobou o filme inteiro.
Eu bem poderia ter passado batido pelo Príncipe da Pérsia. Poderia não ter enxergado nada mais do que o bom filme de ação que é. Mas, por pura coincidência, aluguei, no mesmo fim de semana, Zona verde. Dirigido por Paul Greengrass, que já havia se encontrado com Matt Damon nas sequências Bourne (Ultimato, Supremacia), com roteiro de Brian Helgeland, a partir do livro de Rajiv Chandrasekaran, Zona verde é um ótimo filme de ação e guerra, com uma mensagem clara.
A invasão do Iraque pelos EUA em 2003 foi motivada por uma baita mentira. E, o que é pior, os EUA (pelo menos seu governo) sabiam disso. Não só nunca houve armas de destruição em massa escondidas no país de Saddam Hussein, como Bush e seus asseclas sabiam perfeitamente. Chief Miller (Damon), um soldado consciencioso e patriota, como soem ser os heróis de filmes americanos de guerra, tem a missão ingrata de fazer papel de bobo procurando armas nos sítios apontados pelo serviço de inteligência de seu país. Perde a paciência e decide ir atrás da verdade. Vê-se, então, envolvido numa teia cheia de aranhas carnívoras que teoricamente deveriam estar ao seu lado. Hábil soldado, consegue revelar a verdade, mas não o rumo da história.
O leitor concordará comigo que, depois de ter visto Zona verde, não tinha como não fazer paralelos entre este e Príncipe da Pérsia. Ainda assim, chequei com o dr. Google se eu não estava forçando a barra (ainda se usa essa gíria?). Todas as resenhas do filme publicadas nos EUA faziam essa leitura.
Soderbergh, com roteiro de Lem Dobbs, é uma espécie de versão de O Processo com enxertos de O Castelo, Cartas ao pai e dados biográficos do melhor escritor que já existiu. O resultado é apenas razoável. Não é um filme de ação, embora até haja alguma. Não será considerado entretenimento pela maioria das pessoas que o virem, mas tem uma cena que sintetiza a mensagem dos outros dois. Quando Kafka (Irons) e Gabriela estão caminhando na ponte, conversando sobre o mistério da morte do amigo em comum, travam esse diálogo:
Ela - Não sabemos o que houve.
Ele - Sabemos que não foi roubado. A polícia o identificou pela carteira.
Ela - Acredita neles?
Ele - Não há motivos para duvidar.
Ela - São autoridades, já basta.
Gabriela diz tudo1. O motivo para duvidar do que dizem a respeito da morte de seu amigo é exatamente o fato de se tratar de autoridades. Mas todo mundo mente, protestará, com razão, o leitor. A questão é que as autoridades, por alegado dever de ofício. E, o mais importante, cidadãos comuns cometem as perdoáveis "mentiras brancas", moral e tacitamente aceitáveis. Autoridades não têm limites para o grau de suas mentiras. Se um cidadão comum ultrapassar o limite do aceitável será punido com a indignação dos pares e, se ao fazer isso feriu alguma lei, também o será pela justiça. As autoridades, não.
1. Embora eu já tenha lido os livros do melhor escritor que já existiu pelo menos duas vezes, confesso que não sei dizer se isso é de Kafka ou do roteirista.
Quando dizemos que todos mentimos mentirinhas aceitáveis, é claro que desprezamos duas coisas. A primeira, a opinião de Kant, que discordaria categoricamente. A segunda é que quem decide o que é "aceitável" somos nós mesmos, o que torna bastante elástico o conceito. Acontece que, se esse elástico se esticar demais, arrebenta. É uma espécie de instrumento autocontrolável.
Se perguntássemos a Max Weber o que ele acha dos filmes citados, provavelmente os criticaria com veemência. Em Ciência e política, duas vocações (Cultrix) ele nos apresenta sua teoria ética, chamando de "ética da convicção" aquela mais próxima da kantiana, e de "ética da responsabilidade", a mais utilitarista. Embora ele admita que seja desejável que as duas se completem, critica a falta de comprometimento com as consequências do homem que abraça a ética da convicção: "Para dizer a verdade, se existe um problema de que a ética absoluta [da convicção] não se ocupa, esse é o problema das consequências. (...) Há oposição profunda entre a atitude de quem se conforma às máximas da ética da convicção - diríamos em linguagem religiosa, "O cristão cumpre seu dever e, quanto aos resultados da ação, confia em Deus" - e a atitude de quem se orienta pela ética da responsabilidade, que diz: "Devemos responder pelas previsíveis consequências de nossos atos." (pág. 113).
Weber vai além e cita especificamente o caso de guerras. Para ele, é contraproducente, pelo prisma da ética da responsabilidade, desenterrar "verdades" a respeito de uma guerra vencida: "Documentos novos, trazidos a conhecimento público dezenas de anos após o término de um conflito, só podem ter como resultado o despertar de clamores injustificados, cólera e ódio, quando melhor seria esquecer a guerra, moralmente ao menos, depois de ela terminada. (...) Essa espécie de ética [da convicção] só se preocupa com a culpabilidade no passado, questão estéril do ponto de vista político, porque insolúvel. (...) E não chega a preocupar-se com o que constitui o interesse próprio do homem político, ou seja, o futuro e a responsabilidade diante do futuro." (pág. 110).
Por mais que se critique o "imperialismo americano" (crítica infantil, por sinal, pois quem critica mais gostaria de ser, ele próprio, um império), é preciso conceder-lhes o benefício da capacidade (e liberdade) para a autocrítica. Apesar de permanecer a pergunta: como os americanos se deixaram levar pela mentira quando ela parecia ao resto do mundo tão provável? A resposta foi dada pelo general iraquiano de Zona verde - porque eles queriam acreditar. E o governo Bush/Cheney? Era só uma questão de achar o bode expiatório para descarregar a raiva, ou haveria motivações econômicas de proporções que nem sonhamos? Weber que me desculpe, mas seria ótima ideia desenterrar essas verdades.
Kant, Weber e a mentira
Matt Damon, em Zona verde. No filme, ele precisa encontrar armas de destruição em massa escondidas no Iraque, mas se depara com a farsa por trás da missão
A ética de Kant é a ética dos santos, como diz Weber. E, se tem um calcanhar de aquiles ideal, esse é o tema da mentira. Benjamin Constant percebeu isso, e Kant, por sua vez, nem com malabarismos argumentativos conseguiu respondê-lo satisfatoriamente em "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade" (incluído entre os Textos seletos, Vozes, 2005, trad. Floriano de Souza Fernandes, introdução de Emmanuel Carneiro Leão, p. 72-78).
Ciência e política, duas vocações tem uma edição pela Cultrix, com tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, e prefácio de Manoel T. Berlinck.
O príncipe da Pérsia - As areias do tempo e Zona verde são facilmente encontrados em locadoras. Meu Kafka é em VHS, mas existe uma versão em DVD da Lume.
Max Weber, Ciência e Política: Duas Vocações, Editora Cultrix, 2004, 128 págs.


Fonte: Revista Filosofia - Editora Escala - Edição 54

Cada qual cuide de seu enterro


Cada qual cuide de seu enterro
 
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua mostra como a personalidade, tomada por um complexo, não consegue conviver com a totalidade da psique e dá cabo de uma em detrimento da outra

Por Carlos São Paulo


Aos meus dezessete anos, li a obra de Jorge Amado chamada Os Velhos Marinheiros. No primeiro momento me deparei com uma história envolvente e instigante sobre as mortes de Quincas Berro Dágua. A narrativa começava com a morte literal de Quincas e nos informava que antes ele já havia tido uma morte social. Como eu só havia nascido biologicamente, aguardava a minha existência social ainda por acontecer. Uma questão veio à minha mente: será que todos os indivíduos vão poder nascer socialmente? Certamente existiam casos de abortos, pois muitos viviam na invisibilidade social.
O nascimento social de Joaquim Soares da Cunha - esse era o nome de Quincas Berro Dágua - em sua primeira metade de vida, se caracterizou pela rigidez com que desempenhou seus papéis. Rigidez eu me refiro a um aspecto senex de sua personalidade que o impossibilitou de experimentar a irresponsabilidade e o entusiasmo do puer. Ele tolerou uma vida sem a liberdade de ser, lutando contra todas as forças da natureza que tentavam lhe levar por um caminho que desagradaria aos demais. Havia se acostumado, em suas experiências com as mulheres, certamente desde sua fase inicial de vida, a obedecêlas incondicionalmente em detrimento de si próprio. Marido de Otacília, e pai de Vanda, foi reconhecido por todos como funcionário público, pai e marido exemplar. Era Joaquim vivendo sob a regência de Apolo, um deus da Mitologia Grega regente da estética, do belo e tudo o mais que suscita aos outros uma determinada admiração. Na Psicologia de C. G. Jung, os mitos são histórias que nos ajudam a perceber os padrões universais constitutivos do comportamento humano. A isso ele chamou de arquétipos.

NA PSICOLOGIA DE CARL GUSTAV JUNG, OS MITOS SÃO HISTÓRIAS QUE NOS AJUDAM A PERCEBER OS PADRÕES UNIVERSAIS CONSTITUTIVOS DO COMPORTAMENTO HUMANO. A ISSO ELE CHAMOU DE ARQUÉTIPOS

A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua
Por Jorge Amado
Companhia das Letras
2008
120 páginas
R$ 25,00 (valor sugerido)

Joaquim conviveu com a dor da escravidão sem expressar nenhuma queixa. Negou esse incômodo para poder viver uma falsa paz. Assim, ele evitou perceber a guerra na arena de luta da psique, onde duas partes que se opõem se digladiam sob a regência de um ego disposto a cumprir as exigências do mundo à sua volta. Era como se sua velha mãe da infância se expressasse por meio da mulher Otacília e da filha Vanda. Embora cognitivamente ele soubesse que já não era mais juvenil, não tinha consciência que agia como se fosse, pois o seu comportamento para com a mulher e a filha era dominado por sensações e emoções daquela fase de sua vida. Essa é uma grande diferença entre o saber do ego e a experiência somática do ser dirigida por conteúdos inconscientes.
Essa condição que gerou o comportamento de Joaquim, na Psicologia de Jung, denominase como Complexo Materno. Ele obedecia incondicionalmente à mulher e à filha. As escolhas de uma pessoa com relação a casamento, estilos de vida e outras aparentes decisões, podem advir de uma motivação inconsciente. Nossa sociedade, diferentemente da dos nossos ancestrais indígenas, é pobre em ritos de passagem. Daí, o homem dificilmente sabe que já cresceu para se dar conta de que agora já é pai. A mãe dos seus filhos poderá continuar lhe protegendo, reclamando e exigindo um comportamento sobreadaptado, em detrimento de sua condição de adulto e do direito de viver de acordo com a sua própria natureza. Nos livros apócrifos, no evangelho de Tomé, na tradução de Leloup (1997, p. 28), lê-se o seguinte: "Disse Jesus: aquele que não se desapegar do pai e da mãe não poderá tornar-se meu discípulo".
As forças do desenvolvimento humano, também chamadas de arquetípicas, por muito tempo reprimidas, entraram em erupção sob o domínio do deus Dioniso, forçando Joaquim a deixá-lo participar da vida e, dessa vez, sem a competição de Apolo. Dioniso, para os gregos, é o deus do vinho, do lazer e do prazer. A estrutura do ego daquele homem não era mais capaz de conter as forças dos excluídos. À semelhança do conto de fadas (A Bela Adormecida) estava ali a fada não convidada irrompendo em plena comemoração do nascimento de Bela, para amaldiçoá-la. Devemos descobrir qual o deus do Panteão Olímpico fora rejeitado, para podermos perceber a quem devemos reverenciar. Na natureza, em si, não faz sentido falar do bem e do mal, por isso todos os deuses querem participar da vida, no entanto a consciência faz esse tipo de julgamento e, por isso, dificulta a expressão natural da psique.
A malandragem, a jogatina, o alcoolismo e todos os outros comportamentos rigidamente separados do que seria a vida familiar com respeitabilidade e tradição, agora tinham vez, transformando Joaquim em Quincas Berro Dágua. O momento exato dessa transformação apareceu quando Joaquim, ao receber a sua aposentadoria, se deu conta de que o sacrifício acabara. Naquele momento, virou-se para a mulher e a filha as chamou de jararaca. Viu na figura masculina do seu genro o que ele mesmo foi e o chamou de bestalhão. Jararacas são serpentes peçonhentas cujo veneno intoxica o corpo do homem levando-lhe à morte. A dor de sua mordida é lancinante e certamente Joaquim suportou-a até a sua morte social. Do veneno dessas serpentes, a Ciência conseguiu criar remédios para hipertensão. Foi com o irrompimento dessas forças naturais, impedidas de se expressarem, por causa do complexo materno, que conduziu Joaquim a sair de uma tensão tão grande - hipertensão -, transformando-o em Quincas.


Carlos São Paulo é médico e psicoterapeuta junguiano.
É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia

Fonte: Revista Psiquê - Edição  n 61 - Editora Escala

O Universo Polarizado da Cultura

Tales Ab'saber
O universo polarizado da cultura
Enquanto o mercado cultural nos vende a imagem do belo e do positivo, na sociedade de consumo, o psicólogo Tales Ab`Saber destaca a importância de se fazer a leitura de mundo, pela qual se enxergue também o terrível

Por Sucena Shkrada Resk / Fotos: Fábio Hurpia


 
O psicólogo gaúcho, radicado em São Paulo, Tales Ab’Sáber, 45 anos, concedeu entrevista à Psique Ciência & Vida, na qual faz uma verdadeira imersão sobre a relação da Psicanálise e o universo cultural, com fundamentos na Teoria Crítica. Doutor em Clínica Psicanalítica Contemporânea, Ab`Sáber também é formado em Cinema e Mestre em Artes, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Atualmente é docente da disciplina da Filosofia da Psicanálise, no curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e integrante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Na área literária, é autor da obra O Sonhar Restaurado – Formas do Sonhar em Bion, Winnicott e Freud, com a qual ganhou o Prêmio Jabuti, em 2005.
Segundo ele, é importante que se desconstrua o que o mercado dita como positivo, para que seja possível o desenvolvimento do pensamento reflexivo. Para isso, devemos enxergar o que é terrível. Nesse processo, a cultura pode ser construtiva, em sua opinião, para ocorrer a leitura de mundo.
Do ponto de vista da Psicanálise Contemporânea, como se configura a cultura de massa? Ela pode ser chamada de cultura de alienação?
Ab’Saber:
Essa é uma questão muito importante, porque os termos da Psicanálise clássica para ler a cultura eram bastante genéricos e diziam respeito ao fato de que não deveria existir civilização, que não produzisse um mal-estar e algum grau de alienação neurótica. Freud se remetia ao plano geral da cultura. Isso quer dizer que toda cultura tem alguma dimensão de repressão do ponto de vista do raciocínio freudiano, que vai produzir formações reativas, seja da ordem do sintoma, de compensações e de derivativos simbólicos. A própria cultura seria a expressão simbólica do seu mal-estar. Essa construção é muito ampla. De fato, um dos problemas que o século XX colocou é que a gente precisa se aproximar mais nitidamente do funcionamento de uma dada cultura e não pensá-la de maneira genérica apenas. Nosso maior desafio é a cultura ocidental, que nesse período, se exprimiu como inserção de massas no sistema de consumo e de trabalho, nos países centrais, que ao mesmo tempo, administra o desejo pela mercadoria, a relação das pessoas com a esfera do consumo e produz as figurações imaginárias, para dar conta da situação histórica do presente. Isso é o grande guarda-chuva da cultura de massa. Na periferia, é outra história, como é o caso do Brasil.
Nesse contexto, qual é a sua avaliação sobre o impacto dessa pressão sobre os indivíduos?
Ab’Saber:
O maior problema, em grande parte, é a gestão e a administração do desejo. É evidente que há alguma coisa psicanalítica no humano que resiste a essa gestão e sempre vai produzir um mal-estar nas fronteiras dessa adminis- tração. Por outro lado, há uma invasão muito profunda da própria densidade do sujeito moderno. As dimensões de liberdade, de autonomia, de crítica são reduzidas pelo imaginário articulado fortemente às práticas de consumo. Nes- te sentido, a Indústria Cultural é uma questão clássica do estudo da alienação e da ideologia no século XX. Reduz a integridade e as dimensões do que a Psicanálise chama de ‘eu’. Temos outra situação cultural em que o ‘eu’ é bastan- te submetido às gestões da totalidade da vida social, até mesmo na raiz. A ano- rexia, por exemplo, que é um problema psicopatológico contemporâneo, mos- tra a presença da imagem pré-fabricada da cultura na própria enunciação do que deve ser o ‘eu’ (incluindo o corpo), an- tes de qualquer mediação e perspectiva. Isso é uma alienação muito radical.

E no Brasil, quais exemplos pode citar?
Ab’Saber:
A situação brasileira é dife- rente, porque tem um processamento próprio da periferia, do capitalismo, tanto no século XIX, como no século XX. No XIX, havia um grande atraso e a citação do Brasil ser inserido na modalidade capitalista, como um país escravista, era uma contradição dos ter- mos, mas uma realidade. Isso produzia efeitos psíquicos e subjetivos. Um ar- tista, por exemplo, crítico, poderoso e refinado, como Machado de Assis, per- cebeu claramente que a integridade do indivíduo moderno no país, senhor de escravo, ao mesmo tempo, que liberal, informado e também descomprome- tido de pressões sociais mais estrutu- radas, criava um tipo de figura muito diferente do burguês francês, inglês ou americano. A escravidão, como forma social, alterava a lógica da própria sub- jetivação e da posição do inconsciente. O senhor de escravos funcionava de modo volúvel. Ele podia num momen- to, ser consequente e moderno, e em outro, inconsequente e arcaico.
E no século XX até os dias de hoje?
Ab’Saber: Neste período, há um proces- so de aceleração histórica, com integra- ção ao processo econômico do capitalis- mo central, com produção de contratos e uma estruturação maior de classe si- multaneamente à constante exclusão. O Brasil é uma espécie de fronteira, que está inscrito no processo de desenvolvimento, mas tem um limite de resgate social que nunca se completa inteiramente. Recen- temente, a partir da Democratização para cá, se constelou a fantasia política geral, de que o Brasil acompanha o processo contemporâneo e não está numa posição de atraso. Certos números absurdos da exclusão brasileira continuam intocados. Temos quase 50% da população sem sa- neamento básico




A Psicanálise não trabalha exatamente com a ideia de algo positivo. Isso é um circuito ideológico do que a cultura diz que é positivo para ela ou não, de acordo com seus interesses
Como a população que está abaixo da linha da pobreza se situa no espaço da cultura contemporânea?
Ab’Saber:
A questão está em como a ex- clusão do processo de integridade social se reproduz no psiquismo das pessoas. Na sociedade de classes, você tem várias posições em relação ao núcleo simbóli- co da sociedade. Existe desde os senho- res, que são os criadores desse núcleo, que hoje em dia, são grandes corpora- ções. Há também a classe média e uma massa de miseráveis. Como essas pesso- as são capazes de pensar em relação a esse todo que as exclui? É muito difícil, pois a miséria é radicalmente impotente, sequer tem acesso à linguagem que pode fazer efeito, tira partido dessa alienação. No caso brasileiro, é bastante claro. Se você oferecer acesso a uma televisão e a um carro, você integrou, sem alterar profundamente sua realidade, nem em relação à educação, à qualidade de vida e à exploração a que as pessoas são submetidas. É um grau muito poderoso de manipulação da miséria.

Qual é a forma de superar esses desafios?
Ab’Saber:
O desafio é expandir os direitos simbólicos, de as pessoas demandarem seus direitos e não acreditarem que esses são apenas consumir. Isso é muito pouco. Não só é pouco porque o resgate de muitas violências não é feito, como quanto à perspectiva da dignidade humana, mas a ideologia conservadora do presente conseguiu reduzir a existência a isso.

Uma das principais bilheterias da história do Cinema Nacional, no Brasil, foi Tropa de Elite 2, no final de 2010. Como você vê essa relação do público, principalmente jovem, com um conteúdo que lida com temas, como corrupção e violência?
Ab’Saber:
Tropa de Elite é uma experiência rara no Brasil, de ter um debate coletivo, político e público coordenado e articulado a um filme brasileiro. Como a nossa cinematografia é sempre muito frágil e pouco desenvolvida em relação ao imperialismo do cinema internacional, raramente temos experiências como essa. As questões contemporâneas são reveladas e encenadas por nós mesmos, em um filme. O Tropa de Elite 2 (direção de José Padilha) se beneficia de um gênero que começou com Cidade de Deus (direção de Fernando Meirelles), antecessor ao Tropa de Elite 1. É o nosso filme de polícia e bandido, de investigação sobre a situação de nossa violência, a respeito da ocupação das nossas favelas e periferias pelo tráfico e pela ausência do Estado.

Em sua opinião, esse perfil de filme leva à reflexão?
Ab’Saber:
Eu sempre acho importante haver trabalhos sobre a natureza da realidade e suas contradições. Uma das funções da arte é investigar a realidade. É um instrumento poderoso de nomeação, posicionamento, revelação e intervenção. Eu vi Tropa de Elite 1, por exemplo, diferentemente do que muitas pessoas viram. Considero que se colocava no ponto de vista do policial fascista, mas não era exatamente um filme fascista. O filme não precisa ditar moral, a gente pode entrar no pensamento e ver como funciona, o que o constitui e produz. O fato de populações ideologicamente conservadoras, que acreditam que a violência é um instrumento social legítimo de suas contradições, aderirem ao personagem “capitão Nascimento” (interpretado pelo ator Wagner Moura), mostra que está mais próximo de seu problema ideológico.

Então, está incorreto dizer que a reprodução cultural da violência incita a violência?
Ab’Saber:
Eu penso a Psicanálise com uma posição geral de teoria crítica, por isso, acho que o núcleo violento da sociedade não é exatamente o discurso sobre a violência, mas a realidade violenta que não pode ser nomeada. Um exemplo é a cultura, que é fundada nas dimensões simbólicas de exploração e competição, que também são organizadoras da vida social. Ao mesmo tempo tem um lado moral que quer que o mundo não seja violento. É um paradoxo, pois não é um mundo totalmente inclusivo, como diz que é. A arte pode tanto denunciar, quanto investigar a necessidade humana de violência ou a relação humana com o ódio e mostrar as construções absurdas como as guerras. Também pode configurar, talvez, horizontes de outras possibilidades humanas. Mais até do que dar respostas a coisas concretas, colocar que o ser humano é capaz de pensar ou formular imagens e hipóteses para além do dado.


No contexto psicanalítico, se pode classificar a arte como positiva ou negativa ao indivíduo ou ao coletivo?
Ab’Saber:
A Psicanálise não trabalha exatamente com a ideia de algo positivo. Isso é um circuito ideológico do que a cultura diz que é positivo para ela e não é, com seus interesses. Na his- tória da Psicanálise, o modelo clássico de grande arte, é o Édipo Rei, Sófocles. E ele não é um objeto positivo, é uma construção trágica, quando o ser huma- no rompe com os limites das próprias barreiras da cultura e é capaz de fazer o oposto do que deseja e se destruir a si mesmo, neste processo. A Psicanálise trabalha, então, mais com o reconheci- mento das contradições humanas e as suas dimensões. Quem trabalha com o positivo é a cultura positiva do merca- do, ditando o que é positivo para com- prar e experienciar.

Nesse caso, como funciona esse mercado, quando se trata do enfo- que do consumo consciente?
Ab’Saber:
A Organização Mundial do Comércio (OMC) projeta que daqui a 20 anos triplicará o número de carros, que existe no mundo. De 700 milhões passará a 3 bilhões. Essa programação é a do capital, da indústria e da geopo- lítica global, da exploração da nature- za. Não temos nem ideia de qual é o impacto ambiental disso, porque é tão gigantesco. O mesmo capital que fará esse movimento titânico, e que des- truirá mundos e fará guerras, por causa disso, diz para gente: “Pegue e separe a garrafa PET do papel e da alface, que assim, você está salvando o mundo”. Isso demonstra que as nossas contradi- ções são muito profundas e sérias.

Mas, então, como a arte pode con- tribuir para o pensamento reflexi- vo, nesse cenário de contradições?
Ab’Saber:
Sob meu ponto de vista, a arte interessante seria a que revelasse essas contradições. Um exemplo é o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que é uma obra reveladora do absurdo da violência. Ali há um discurso, de certa forma profundo, que nos leva a não desejar a guerra. Isso sem recuar em nenhum centímetro, do horror, da natureza concreta e histó- rica daquele objeto. Dá para entender perfeitamente como as lógicas perver- sas que aquilo gera. Diante desse ter- ror, a humanidade é levada a perguntar se é realmente isso que a gente quer. Por isso, nem sempre a chamada positiva tem esse papel para o ser humano, mas a que revela esses traços negativos é a favor.

Como você define a situação da par- cela da população que é excluí da da educação e da cultura?
Ab’Saber:
Posso citar o exemplo de um dos resultados da pesquisa sobre hábi- tos culturais da população paulista, rea- lizada pelo Instituto Datafolha, em par- ceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), em 2010. No levantamento, 22% disseram que não sabiam definir o que melhor representa a cultura brasi- leira e não tinham condição de sequer enunciar uma ideologia. Essas pessoas têm dúvidas até sobre o óbvio, como o Carnaval, o Futebol e o Samba. Estão fora do consumo comum e básico de cultura e praticamente da humanidade. Elas são humanas, mas não circulam no circuito simbólico humano. Devem ter suas próprias produções.

Qual é a fronteira entre o analfa- betismo funcional e o analfabetismo absoluto?
Ab’Saber:
Não sei se existe essa fron- teira. Uma pessoa que não é capaz de dizer absolutamente nada sobre o seu mundo, é um analfabeto cultural, mas na verdade, uma vítima de um mundo que se produz para ele, de modo que ele nada possa dizer. Ninguém quer estar fora da trama da cultura. Eu acredito que isso diz respeito à educação e, aci- ma de tudo, à renda. Antes de chegar à cultura, as pessoas primeiramente vão comer e organizar sua vida básica. O mesmo todo que expulsa essa massa, é o único que pode resgatá-la. Fora isso, temos aí, sim, o analfabetismo cultural, que é acreditar que a vida é o gesto de comer e realizar a demanda imediata do sistema da mercadoria.
Do ponto de vista da Psicanálise, como se inserem as culturas de raiz ou tradicionais?
Ab’Saber:
Essas culturas são bonitas e sábias, mas são ligadas a uma estru- tura social de ritmo lento e dependem muito da manutenção da organização sociológica de seu mundo. Quando o mercado desorganiza essa realidade, aumentando a produtividade, subme- te os trabalhadores e essas culturas tendem a virar mercadoria, em vez de organizar a relação entre os mais ve- lhos até as crianças. Há uma descarac- terização. Às vezes, surgem crises de identidade e de saúde pública muito profundas, por exemplo, entre popula- ções indígenas.

Que tipos de crises?
Ab’Saber:
Ocorre a miserabilização dos povos tradicionais. Por exemplo, nas regiões onde serão construídas grandes hidrelétricas, na Região Norte, ao mesmo tempo, que geram renda e alimentam a energia da expansão industrial daquele lugar; interferem radicalmente na vida dessas comunidades ao redor. Desorganizam a estrutura ecológica, deslocam populações inteiras a cidades artificiais. Com isso, é cortada a conexão com a cultura original. A árvore que tinha uma história, as pessoas que circulavam na antiga cidade, tudo isso desaparece da noite para o dia. E não há garantia de que essa população não vá se dispersar.


Ligamos todo o dia a televisão e estão nos dizendo como “ser feliz”. Basta fazer alguns daqueles gestos e saber que tudo é mentira, mas é incrível a infantilização do pensamento que existe nisso
Pode-se dizer que o ambiente cultural reproduz a esquizofrenia presente na atualidade?
Ab’Saber:
Deve haver uma crítica política a esse mundo esquizofrênico. No campo da arte, Franz Kafka, Samuel Beckett, Jean-Luc Godard, entre outros, percebem que a ordem da própria cultura não é coerente com seus próprios desejos. Existe algo de psicanalítico nisso. Os filósofos da Teoria Crítica, dos anos 30 e 40, nos colocaram para a gente pensar. Theodor Adorno dizia que alguma coisa do desenvolvimento é esquizofrênica, porque aumenta a contradição e fragmentação e não a resolve. Tudo depende do que a gente seleciona para olhar sobre a realidade. Se olha o momento feliz daquilo que a gente compra no shopping ou se olha as horas que a gente passa de vida em um ônibus lotado. É um mesmo mundo.

Como poderíamos definir, nesse contexto, o que é a felicidade para o homem moderno?
Ab’Saber:
A Psicanálise não trabalha muito com a ideia de felicidade como algo realizável, como a ideologia do mercado produz. Ligamos todo o dia a televisão e estão nos dizendo como “ser feliz”. Basta fazer alguns daqueles gestos e saber que tudo é mentira, mas é incrível a infantilização do pensamento que existe nisso. Se comprar o produto tal, terá aquela cena familiar ou é vendida a ideia de que será um homem livre na natureza. É uma mentira tão grosseira, mas as pessoas estão sintonizadas com isso. É uma grosseria de pensamento, de afeto. Então, o que seria um possível horizonte de felicidade? O fato de ter a capacidade de pensar em nossos próprios problemas e encará-los de frente, considero que nos torna feliz. Tanto nossos problemas individuais, pessoais, quanto os nossos profundos e subjetivos, nos quais a Psicanálise se desenvolveu muito, não são legíveis, sem haver a leitura do mundo, que é em parte terrível e em parte maravilhoso, mas que nos impede de pensá-lo como um mundo terrível. Mas eu acho que é um gesto feliz pensá-lo como um mundo terrível, porque nos dá autonomia e nos liberta.

Fonte: Revista Psiquê -  Edição nº 61 - Editora Escala

Dilma rompe laços do Brasil com o regime do Irã

Dilma rompe laços do Brasil com o regime do Irã

El País
Juan Arias
No Rio de Janeiro
  • O ex-presidente Lula conversa com a presidente Dilma Rousseff O ex-presidente Lula conversa com a presidente Dilma Rousseff
Em um discurso aplaudido de pé no Rio Grande do Sul, diante de sobreviventes do Holocausto judeu nas mãos dos nazistas, a presidente brasileira, Dilma Rousseff, surpreendeu na noite de quinta-feira por sua enérgica defesa dos direitos humanos por parte de seu país em todo o mundo: "Meu governo será um incansável defensor da igualdade e dos direitos humanos em qualquer parte do mundo", disse. "Nós não somos um povo que odeia, nem um povo que respeita o ódio, por isso o Brasil tem uma posição histórica que nos orgulha".
O discurso da presidente diante da influente Confederação Israelita do Brasil (Conib) foi interpretado como uma clara mudança na política externa brasileira em relação ao Irã, depois de dois fortes laços forjados pelo ex-presidente Lula, sobretudo em seu segundo mandato, com o presidente Mahmoud Ahmadinejad. O regime islâmico de Teerã executa homossexuais e condena à morte mulheres por adultério - como é o caso de Sakineh Ashtiani - e também nega o Holocausto.
Talvez por isso, durante a cerimônia, o presidente da Conib, o oftalmologista Claudio Lottenberg, comentou a mudança da política brasileira em relação ao Irã. Ainda distinguindo que os ataques a Israel são do presidente, e não da população iraniana em seu conjunto, Lottenberg mostrou-se feliz "ao saber que a presidente Dilma Rousseff tem hoje uma posição diferente da mantida pelo presidente Lula no passado".
Na primeira entrevista que Rousseff deu depois de assumir o cargo, em 1º de janeiro, para um veículo da mídia americana, no caso o jornal "The Washington Post", a presidente já revelou uma mudança de posição sobre o Irã. Para Rousseff, a população do Brasil "é integrada por valores que respeitam dois grandes princípios: a paz e a conciliação". E, falando na cerimônia do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, Rousseff lembrou que o mundo "ignorou na época da Segunda Guerra Mundial os sinais do avanço da barbárie antes da ascensão do nazismo" e que o Holocausto inaugurou uma época de "violência industrializada" e de "tortura científica".
Diante da presença dos sobreviventes do Holocausto Max Schanzer e Sara Perelmuter, de 87 anos, Rousseff lembrou que durante séculos o povo judeu manteve sua pátria através de seus intelectuais, seus livros, sua cultura, religião e vida familiar, até conquistar sua pátria física. "Um direito que não pode ser negado a nenhum povo", afirmou.

Fazer a sesta ajuda a consolidar a memória, dizem cientistas

Fazer a sesta ajuda a consolidar a memória, dizem cientistas

  • O melhor meio de não esquecer uma poesia ou um teorema que uma pessoa acaba de aprender é tirar um cochilo após o almoço O melhor meio de não esquecer uma poesia ou um teorema que uma pessoa acaba de aprender é tirar um cochilo após o almoço
O melhor meio de não esquecer uma poesia ou um teorema que uma pessoa acaba de aprender, pode ser o simples ato de fazer a sesta, consideram cientistas alemães, eles mesmos surpreendidos com a descoberta.
Suas experiências, publicadas na revista Nature Neuroscience, mostram, com efeito, que o cérebro resiste melhor durante o sono a tudo o que pode misturar ou alterar uma lembrança recente.
Estudos precedentes já haviam provado que a memória recente, estocada temporariamente numa região do cérebro chamada hipocampo, não se fixa imediatamente. Sabe-se, também, que a reativação das lembranças, pouco tempo após serem adquiridas, desempenha um papel determinante em sua transferência para a zona de estocagem permanente, o neocórtex, espécie de "disco rígido" do cérebro.
Mas, por exemplo, aprender um segundo poema no intervalo pode tornar mais difícil gravar o primeiro na memória longa.
Partindo do princípio de que o sono não tivesse nenhuma influência neste processo, Bjorn Rasch e seus colegas da Universidade de Lübeck (Alemanha) quiseram se assegurar numa experiência.
Pediram então a 24 voluntários que memorizassem 15 pares de cartas com imagens de animais e objetos comuns. Quarenta minutos mais tarde, a metade dos que foram mantidos despertados, precisaram memorizar uma outra série de cartas levemente diferentes.
A outra metade, os doze outros voluntários, tiveram o direito de fazer uma curta sesta antes de memorizar a segunda série de cartas.
Os dois grupos foram testados em seguida sobre sua capacidade de se lembrar da primeira série.
Para grande surpresa dos cientistas, os que dormiram um pouco tiveram um desempenho melhor, lembrando-se, em média, de 85% das cartas, contra 60% entre os que foram mantidos acordados.
"Pensamos que a razão deste resultado inesperado é que a transferência das lembranças entre o hipocampo e o neocórtex havia começado já nos primeiros minutos de sono", explicou Susanne Diekelmann, responsável pelo estudo.
Após um sono de apenas 40 minutos, uma quantidade importante de lembranças já havia sido "telecarregada" numa zona do cérebro na qual "não podiam mais ser misturadas por novas informações tratadas no hipocampo", explicou ela.
Segundo Diekelmann, o efeito benéfico das siestas na consolidação da memória poderia ter implicações interessantes para as atividades de aprendizagem intensiva, como a de línguas estrangeiras.
O processo poderia também beneficiar as vítimas da síndrome de estresse pós-traumático, uma doença que atinge as pessoas que viveram situações extremas (acidente grave, atentado, agressão, etc.), ajudando-as a reconfigurar suas lembranças.

Atendimento psicológico para emergências em aviação: a teoria revista na prática

Atendimento psicológico para emergências em aviação: a teoria revista na prática

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Maria Helena Pereira Franco
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo





Em 1996, um desastre aéreo em São Paulo causou a morte de 99 pessoas, entre passageiros, tripulantes e um morador das casas atingidas. Um grupo de psicólogos atendeu familiares dos passageiros, funcionários da empresa aérea e moradores das ruas atingidas, a partir da experiência clínica já obtida com pessoas enlutadas. O atendimento se deu de maneira pontual, nos dias imediatos ao desastre, e também com contornos clínicos tradicionais, ao longo de meses após o mesmo (Falco, 2003) para as pessoas que apresentaram condições de risco para luto complicado (Doka, 1996). A experiência levou o grupo a profundas reflexões sobre esta modalidade de atendimento e gerou reformulações e desenvolvimentos teóricos que se revelariam de grande importância em situações futuras (Franco, 2003a).
Posteriormente, a partir de 1998, formou-se um outro grupo de psicólogos, especificamente com o objetivo de preparar-se para atuar em situações de emergência, relacionadas a desastres, traumas e luto traumático (Franco, 2003b). A proposta deste grupo, para promover "sobrevivência grupal", como recomendam Williams, Zinner e Ellis (1999, p. 6), Cohen (2000) e American Psychiatric Association (1995), é: (a) oferecer atendimento psicológico especializado para situações de crises, catástrofes, emergências e luto, nos diferentes âmbitos de necessidade dos envolvidos, visando uma ação preventiva para situações de stress pós-traumático e luto traumático; (b) desenvolver habilidades nos profissionais envolvidos com essa atividade, de maneira a terem uma atuação eficiente, com risco controlado para sua saúde mental.
Este artigo focaliza o eixo luto-trauma, ampliando para as possibilidades de intervenção em situações de luto traumático, em conseqüência de desastres aéreos. Assenta-se na dialética experiência-abstração (Stein, 2002b), de modo a entender e oferecer ajuda diante de um desastre. Comenta sobre a atuação deste grupo de psicólogos com experiência em atendimento a emergências, a partir de três desastres aéreos, guardadas as considerações sobre a inexistência de dois desastres iguais, o que leva, necessariamente, à flexibilidade na atuação, mesmo que seja pautada em um protocolo.
Para fazer parte deste grupo, a experiência mostrou as condições necessárias: (a) disponibilidade para ser acionado por 24 horas, 365 dias por ano, para ser contatado e posicionado em menos de 10 minutos; (b) disponibilidade para viajar para qualquer lugar do mundo; (c) domínio de, no mínimo, mais um idioma, além do Português; (d) treinamento para atendimento em situações de luto e participação nos treinamentos mensais específicos deste grupo, com número máximo de duas faltas permitidas por ano. Uma exigência absoluta está em assumir compromisso de sigilo sobre as atuações, incluindo nos contatos com a mídia. Presentemente, há 22 psicólogos no grupo, sendo que seis com doutorado em Psicologia Clínica, seis com mestrado (um cursando Doutorado), cinco cursando mestrado. Destes, nove já participaram de atendimento a acidentes aéreos.
O trabalho deste grupo responde diretamente às determinações do Departamento de Aviação Civil - DAC sobre assistência às famílias de passageiros vitimados em desastres aéreos.
A postura atual recomenda que a resposta ao desastre, com cuidados em situações traumáticas, se destine a sobreviventes machucados ou não machucados; parentes e amigos enlutados e traumatizados; equipe de assistência emergencial; membros da equipe de resgate e outros serviços de apoio; membros da mídia que cobriram o fato; e vítimas secundárias (Figley, Bride, & Mazza, 1997; Hodkinson & Stewart, 1998; Lewis, 1994; Stein, 2002a; Young, 1998). Como se observa, é amplo o espectro de pessoas atingidas por um desastre aéreo, mesmo que o órgão governamental brasileiro regulamente prestação de assistência exclusivamente às famílias.
Algumas definições se fazem necessárias, de acordo com Lewis (1994), James e Gilliland (2001). Entende-se crise como a interrupção em um estado previamente normal de funcionamento, que resulta em instabilidade e significativo desequilíbrio no sistema. Sua sintomatologia é complicada, abrange indivíduo, familiares e comunidade, sem que precise estar exclusivamente associada ao evento gerador. Ninguém fica imune ao impacto de uma crise, mas cada pessoa a enfrentará com seus recursos, mesmo que em circunstâncias semelhantes. Um trauma é definido como uma ruptura no tecido vivo, causado por um agente externo, como resultado de uma cirurgia, um ato violento, um desastre. Geralmente leva a um estado de crise. Pode ser também definido como um período de desequilíbrio psicológico, resultante de um evento ou situação danosa, assim constituindo um problema significativo que não pode ser resolvido com as estratégias de enfrentamento conhecidas. Uma experiência traumática se dá quando uma pessoa se confronta com a morte, ameaça de morte, ferimentos sérios em si ou no outro e reações de intensa dor, desamparo ou horror.
Desastres diferem de outros tipos de trauma, com relação à sua escala e efeitos, o que vai implicar um apoio diferenciado daquele oferecido em situações de perda e stress.
Trauma psicológico em resposta a desastres
As reações típicas ao trauma se apresentam como intensa angústia diante de situações que lembrem o momento traumático, ou mesmo algum aspecto referente a ele; reação fisiológica diante desta exposição: ansiedade, sensações físicas, sensação de pânico; diminuição do interesse e participação nas atividades rotineiras; sensação de estranhamento diante das outras pessoas, retraimento e isolamento; inabilidade para fazer projetos e medo de morrer (Hodgkinson & Stewart, 1998).
O acontecimento traumático é persistentemente revivido em, ao menos, uma das seguintes maneiras (American Psychiatric Association, 1994): memórias recorrentes ou intrusivas, incluindo imagens, percepções e sonhos; agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente, incluindo a sensação de reviver a experiência, ilusões, alucinações e flashbacks dissociativos; agir ou sentir como se a pessoa falecida estivesse viva e presente (incluindo alucinações). Outras reações ao trauma incluem evitação de eventos associados a ele, como indicado em, pelo menos, três dos seguintes critérios: esforço para evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas ao trauma; esforço para evitar atividades, lugares ou pessoas que lembrem a pessoa perdida ou o próprio evento traumático; inabilidade em lembrar algum aspecto importante, relacionado à negação da perda; inabilidade para sentir e apegar-se.
Os sintomas do trauma incluem distúrbios do sono; irritabilidade, hostilidade em relação aos outros e explosões de raiva; dificuldade de concentração, compreensão e confusão; hipervigilância, desconfiança, agitação e insegurança; respostas exageradas aos estímulos do ambiente; suor excessivo, palidez, taquicardia, dor de cabeça, febre, desmaios e enjôo.
Em função do fato gerador do trauma, associado às demais condições que o definem, ele pode se manifestar pela Reação Aguda de Stress - RAS (aparecimento dos sintomas logo após o desastre e pela elaboração desses sintomas num período de um mês) ou pelo Distúrbio de Stress Pós-Traumático – DSPT, ou PTSD (persistência dos sintomas descritos anteriormente por mais de um mês ou aparecimento dos sintomas pelo menos um mês após o trauma). A descrição destas condições foi feita pela primeira vez pela American Psychiatric Association (1994), tendo sido retomada por Lewis (1994), Classen, Koopman, Hales e Spiegel (1998), Harvey e Bryant (1998) e Hodgkinson e Stewart (1998).
Estudos apontam que 75% das pessoas expostas a uma situação traumática necessitam ser adequadamente avaliadas quanto à possibilidade de apresentarem distúrbios psíquicos, com as complicações associadas: depressão, ansiedade e fobia, abuso de drogas e álcool (Freedy, Saladin, Kilpatrick, Resnick e Saunders, 1994; Giel, 1990; Green, 1994).
Como as reações a um desastre são muito variáveis, não é possível prever o tempo de que as pessoas traumatizadas necessitam para se recuperar. Há alguns fatores que podem contribuir ou impedir a recuperação destas pessoas, como a existência de sistemas de apoio dentro e fora da comunidade envolvida, o que ressalta a importância de apoio psicológico especificamente dirigido a estas necessidades.
O luto nas emergências
A outra vertente para a compreensão da vivência da pessoa envolvida em um desastre é o luto, aqui entendido como reação normal e esperada para o rompimento de vínculo (Parkes, 1998). Tem como função proporcionar a reconstrução de recursos e viabilizar um processo de adaptação às mudanças ocorridas em conseqüência das perdas (Bromberg, 1995; Franco, 2002; Parkes, 1998). É um processo determinado por fatores tanto internos (estrutura psíquica do enlutado; tipo de vínculo com a pessoa falecida; histórico de perdas anteriores) como externos (circunstâncias da perda; crenças culturais e religiosas; apoio recebido).
A compreensão do luto como um processo permite entendê-lo ao longo de fases, das quais a primeira é a que mais toca de perto a realidade do atendimento em desastres aéreos. É a fase de entorpecimento, na qual a reação encontrada é de choque e descrença. O enlutado tem dificuldade em entrar em contato com a nova realidade e esta dificuldade é acentuada em situações de perda repentina ou inesperada. As fases seguintes (anseio e protesto, desespero e recuperação e restituição) podem se intercalar e têm duração variada.
Quando as reações perante as perdas não são as esperadas, isto é, fogem da sintomatologia e do processo descrito acima, é encontrado um processo de luto complicado.
Há fatores de risco para a instalação do luto complicado, entre os quais encontram-se aqueles relativos às circunstâncias da perda: mortes repentinas, violentas, consideradas prematuras pelo enlutado; a causa da morte e seu significado; o tipo da morte, destacando-se exposição à mídia, mortes estigmatizadas ou causadoras de vergonha ao ambiente social; existência de segredos relativos à morte ou à sua causa; falta de rituais; falta de suporte; outras perdas concomitantes a morte.
Respondendo ao desastre
James e Gilliland (2001) fizeram uma importante revisão acerca das abordagens utilizadas na compreensão e na atuação em situações de crise e afirmam que intervenção em crise é diferente de psicoterapia do luto e de psicoterapia focada no problema, ressaltando a importância de fatores sociais, desenvolvimentais, psicológicos, ambientais e situacionais que fazem com que um dado evento seja vivenciado como uma crise. Recomendam que um trabalho de intervenção em crise, como o atendimento psicológico em emergências, deve utilizar-se uma abordagem focal, embora problemas concomitantes sejam reconhecidos como importantes na dinâmica da situação-problema. O objetivo não é a modificação de características peculiares da pessoa em crise ou de seu padrão de personalidade. Portanto, é necessário perceber a configuração da situação de crise, sempre levando em conta as condições individuais, porque a intervenção deve contemplar ambos os aspectos, o genérico e o específico, fazendo uso de técnicas que considerem essa demanda (Hodgkinson & Stewart, 1998). Estes princípios norteiam a ação deste grupo, uma vez que correspondem não somente aos aspectos técnicos utilizados, mas, sobretudo, a uma postura ética e epistemológica necessária para uma definição de protocolo de ação.
Nosso trabalho busca cuidar da intervenção em crise considerando diferentes necessidades, específicas às fases de atendimento (Hodgkinson & Stewart, 1998; Nurmi, 1998): impacto, retração ou recuo, período pós-traumático. Também seguimos a orientação do grupo NOVA – National Organization for Victims Assistance (Young, 1998) sobre a seqüência no atendimento a vítimas de desastres aéreos, mesmo considerando que muitas dessas ações se sobrepõem e não é sempre possível estabelecer limites cronológicos ou seqüenciais rígidos diante das especificidades do desastre. Nossa atuação se apresenta, então, no 2º momento, de intervenção psicológica em emergência (intervenção em crise), antecedido do resgate físico e seguido de psicoterapia ou aconselhamento.
Lidando com pessoas enlutadas e traumatizadas
A pessoa enlutada em condições traumáticas está fragilizada e precisa de acolhimento, paciência e atenção; geralmente está desorganizada, incoerente, assustada, paralisada. Levando em conta estas condições peculiares, alguns cuidados são primordiais, na atitude em relação a esta pessoa. O que norteia nossa prática é o cuidado para não fazer com que a pessoa pare de sofrer rapidamente, pois isto seria um mecanismo de tamponamento de sua reação, com graves conseqüências. Assim sendo, cuidamos para não evitar o assunto e não desviar a conversa do tema.
A intervenção psicológica em emergência, como proposta por Young (1998) e realizada por este grupo, procura reduzir o stress agudo, causado pelo impacto do trauma, por meio de: (a) restaurar a dominância do funcionamento cognitivo sobre reações emocionais; (b) facilitar a restauração do funcionamento das instituições sociais e da comunidade; (c) facilitar o reconhecimento cognitivo do que aconteceu.
A intervenção psicológica em emergência procura também restaurar ou aumentar as capacidades adaptativas, por meio de: (a) oferecer oportunidades para as vítimas avaliarem e utilizarem apoio familiar ou da comunidade; oferecer educação sobre expectativas futuras e (b) oferecer oportunidade para os sobreviventes organizarem e interpretarem - cognitivamente - o evento traumático.
Lidando com perdas pessoais
O profissional que atua exposto a situações de stress, como o que atende vítimas de desastres aéreos, apresenta também reações que podem ser, segundo Lewis (1994) e Hodgkinson e Stewart (1998): emocionais, físicas e cognitivas.
Isto requer, portanto, que junto a um profundo conhecimento das técnicas empregadas, o profissional tenha consciência de aspectos relevantes de sua condição pessoal para este tipo de atividade e possa identificar suas necessidades de descanso, alívio, até mesmo de afastamento da atividade. É um indivíduo em risco.
Nos treinamentos do grupo, a distinção entre atendimento psicológico em emergência e psicoterapia é muito clara, embora as situações críticas apresentem uma dinâmica de tal ordem que pode ser considerado adequado e necessário que se fizesse uma intervenção com uso de recursos advindos de ambas as abordagens.

Referências
American Psychiatric Association. (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (4ª ed.). Washington, DC: Autor.         [ Links ]
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